os ciclos diários da necessidade de mexer o corpo, o fogo que lambe a panela e cozinha o alimento cotidiano, o olhar que vai sendo treinado ao longo da vida, os micélios dos cogumelos enraizando: tudo o que se repete, transforma.
foi com essa ideia que saí da exposição “OSGEMEOS: Nossos Segredos”, em cartaz no CCCB de Belo Horizonte. foi bonito ver o processo de criação dos irmãos, os primeiros rabiscos da adolescência, telas feitas a partir de infinitos materiais… fiquei admirando por vários minutos o rascunho que deu origem àquela arte feita no avião da Gol, que transportou a Seleção Brasileira na Copa do Mundo, em 2014, e representava o povo brasileiro. gosto muito de observar o processo de criação das pessoas, seja ele qual for.
o que mais me confortou foi reparar que várias representações se repetem pelas obras: a cachorra da família, os traços de mulheres que lembram os bordados da mãe dos artistas, a lua em várias fases, os barcos e os atravessamentos, os símbolos musicais e as muitas figuras com cabelos icônicos, cheios de balangandans pendurados, dentre outras imagens.
e imersa ainda na arte, na semana anterior, visitei Inhotim, o maior museu a céu aberto do mundo, para conhecer uma parte do conjunto de obras do artista, político e ativista Abdias Nascimento (1914- 2011), pertencente à coleção “Museu de Arte Negra”. foi emocionante ver Elisa Larkin, uma das responsáveis, que foi casada com Abdias, contando na inauguração da exposição sobre o caminho que aquelas obras fizeram.
sem romantizar o racismo e as censuras diversas sofridas por Abdias ao longo da vida, tinha muito sorriso no rosto dos envolvidos naquele acontecimento: um museu dentro de outro museu. Abdias começou a pintar inspirado em outros artistas e usou sua arte para levantar questões fundamentais, grande parte delas relacionadas aos povos africanos, resultando num trabalho atemporal. é impossível sair dali indiferente, pois a gente sabe que ainda hoje há pouco espaço para a arte não-branca no mundo.
trajetórias admiráveis e acontecimentos grandiosos não rolam num passe de mágica: eles vêm da insistência, do desejo e da repetição humana. fiquei refletindo sobre as narrativas que a gente constrói a longo prazo, sobre como comunicamos as coisas e, mesmo sem perceber, acabamos recontando histórias durante muitas décadas, pois elas nos constituem.
as redes sociais têm sede de “experiências” nunca antes vistas, exigem a dinâmica da novidade a qualquer custo. quem cria conteúdo, reclama que a cada ano fica mais difícil ser autêntico e pagar boletos sem cair no ridículo ou nas trends que todo mundo acaba reproduzindo e que, na minha opinião, fazem a internet ficar chata.
no meu caso, como cozinheira e pesquisadora, criar sem apelar ao fazer comidas com muitos ingredientes duvidosos ou colocar num vaso sanitário um combinado de produtos ultraprocessados que até deus duvida, tudo para gerar engajamento.
já repararam que, de repente, perfis que falam de comida aparecem coincidentemente com a mesma receita em questão de uma semana? geralmente é uma cópia de vídeos que viralizaram em outros países, mas ainda não chegaram por aqui. existe a delícia inegável da novidade aí, mas me preocupa: como engajar meu olhar, aquele olhar repetitivo que só um ser humano tem, sem estar sujeita às reproduções automatizadas? como falar das mesmíssimas coisas: da mandioca, do arroz com feijão, do trivial, do cotidiano e do que acalma numa sociedade onde a chegada de Inteligências Artificiais como o GPT-4 e o Midjourney 5, abala profissionais de todas as áreas, especialmente escritores e artistas?
sou do tempo da internet discada e já entendi que, não importa o quanto me esforce, sempre me sentirei atrasada ao tentar acompanhar a qualquer custo a tecnologia. essa busca está afetando nosso cérebro.
tenho medo de me tornar obsoleta, mas sei que algumas condições humanas são insubstituíveis, como a oralidade e todo o conhecimento que vem dela. nem tudo está registrado na internet e será apropriado pelo ChatGPT (será? orando!).
ainda que essa tecnologia, que também cria textos e receitas, evolua absurdamente num tempo recorde, de um jeito que talvez a gente nem consiga mirar agora, não vai conseguir explicar como fazer farofa ou mandioca pubada assim como ensina a Dona Vera ou a Tia Carmem. pelo menos não com o charme delas, com as metáforas, semióticas, projeções, jargões regionais, gestos, invencionismos, trejeitos, repetições e palavras. somente nós, bichos, temos a capacidade de elaborar com tanta autenticidade. requer convívio social e empatia.
a Ana, amiga que foi comigo à exposição d’OSGEMEOS (doutoranda em literatura e revisora desta edição que você lê agora), disse, quando me escutou refletindo, ainda de forma desorganizada, sobre tudo que agora escrevo, que: “a repetição é comprovada na Psicanálise como uma manutenção de nossa organização cognitiva para processar nossas narrativas na compreensão da própria existência. O ser humano não entende a si e ao mundo sem narrar. Homo narrans é um termo usado nos estudos sobre cognição que afirma essa funcionalidade cerebral que temos: narramos para que o mundo exista, repetimos para que ele faça sentido”.
precisamos, então, de tempo para processar toda a repetição, para que a gente se entenda e compreenda os outros também. a Denise Fraga, numa entrevista, disse que o mais problemático da gente acelerar os áudios e vídeos é correr o risco de, no futuro, não ter mais paciência de conversar com pessoas idosas. isso me atravessou bastante, pois confesso que sou a pessoa que acelera áudios, e já bati no peito defendendo essa prática. mudei de ideia e ando me monitorando para não fazer mais isso, pois acho triste o impacto da tecnologia quando me pego como peão de madeira rodopiando os dedos na tela para tentar ser estimulada por qualquer imagem rápida que me suspenda da realidade.
a importância de sair da tela, socializar e contar histórias onlife talvez nunca tenha sido tão grande.
mas tem uma parte boa, apesar desse horror tecnológico: quanto mais tento equilibrar minha sede pelo novo com a preservação da capacidade de ouvir as pessoas, vou aprendendo que já sou, perante a tecnologia, uma velha senhora que conta as mesmíssimas histórias, e há uma beleza nisso. o que diferencia a gente das IA’s é poder desejar e recontar narrativas a partir de outras perspectivas, reinar o olhar durante a vida mudar de ideia e não perder a capacidade de se surpreender com bobagens ou se divertir com ironias.
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resolvi abrir para todos essa possibilidade de apoio, pois seria muito legal abrir a possibilidade de desengavetar projetos e sonhos, já que os textos ocupam bastante minha cabeça. estou por aqui sempre tomando o cuidado de repensar o quanto exponho de minha vida pessoal, como vou lidar com essa exposição e qual o melhor jeito de ser clara elaborando essas cartinhas mensais.
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agenda aberta: planejamento alimentar
para quem quiser planejar a alimentação comigo, a agenda de abril e maio está aberta. são apenas cinco vagas, pois a ideia é traçar, de forma personalizada, planos a longo prazo assim que as dúvidas forem surgindo, após uma conversa inicial entre a pessoa que quer organizar a cozinha e eu. para entender como funciona, me dá um Oi no WhatsApp que eu te envio um PDF explicativo, com FAQ, além de duas opções de combos e pagamento.
oficina de fermentação
minha próxima oficina de fermentação, a última do semestre, acontecerá no dia 21/04, sexta-feira de feriado, na minha cozinha, aqui em Belo Horizonte: o Espaço Casca, que fica numa pracinha belíssima. a ideia é a gente se reunir para degustar fermentados e aprender muitas técnicas fermentativas (e não é só sobre receitas, sempre gosto de pontuar isso).
são quinze vagas no total e, dentre elas, tenho vagas sociais e há desconto para inscrições em dupla. :)
se inscrevam aqui!
nos vemos?
com amor e com fome,
Carolina Dini
Revisão de texto: @revisa.prosa (Ana Travessia)
Arte: @comidailustrada (Eduardo Albuquerque)
Que texto gostoso, que reflexões importantes! Me identifiquei um tantão. Obrigado ♥️
Muito bom te ler. De vez em quando me surpreendo com seu email e conforme vou seguindo, suas palavras vão envolvendo meus pensamentos que reagem com respostas e sentimentos. Muito bom te ler.✨