Fungos, fungos, fungos
Até os vinte anos de idade eu associava cogumelo exclusivamente ao champignon em conserva que minha mãe usava para fazer os estrogonofes que pedia nos meus aniversários. Foi só quando mudei para Belo Horizonte, há mais de uma década, que conheci os muitos tipos de cogumelos disponíveis para uso culinário e fiquei curiosíssima com as possibilidades.
Foi lendo A vida secreta das árvores, do Peter Wohlleben, onde ele fala sobre os serezinhos invisíveis que estão nos solos e como as plantas se comunicam entre si através de cadeias intermináveis de micélios, que passei a prestar mais atenção nos troncos das árvores, suas cascas, rachaduras e coloração.
Desde então, nas voltinhas cotidianas com meu cachorro pelo bairro, já encontrei alguns tipos de cogumelos e líquens, mas, como meu conhecimento é raso, não me arrisco a colocá-los no prato: é preciso muito cuidado para não consumir alguma espécie venenosa, tóxica, e, porque não, alucinógena (um dia ainda pretendo ter essa experiência).
Uma das minhas formas de estudar os cogumelos é seguindo micologistas e hashtags no Instagram como “fungi", “cogumelos”, etc. Foi assim que me deparei com o documentário Fantastic fungi, disponível na Netflix. Quase caí pra trás com a fotografia dessa produção: confesso que já assisti três vezes e ainda não me cansei da beleza das imagens e informações. Indico que você assista, se puder, saboreando, quem sabe, um pão de milho com os cogumelos confitados que vou ensinar a fazer nas próximas linhas.
O diretor do documentário é um fotógrafo famoso por seus time-lapses, e nesta entrevista, chamada How mushroom time-lapses are filmed, ele conta como fez para captar as imagens que mostram o crescimento de diversas espécies. Só serviu para aumentar minha vontade de um dia comprar um microscópio...
Discípula da Neide Rigo que sou, vivo fuçando o blogue dela, o Come-se, onde há mais de cem posts sobre cogumelos. Eta, mulher sabida! Num deles, encontrei esta passagem satisfatória:
“Segundo o micólogo Nelson Menolli Jr., há estudos que apontam como sendo 22 mil o número estimado de espécies de cogumelos no mundo, sendo que aproximadamente 2 mil são comestíveis e cerca de 100 representam espécies cultivadas. Este número é desconhecido em se tratando de Brasil, mas estudos preliminares do grupo do professor Menolli apontam como 2 mil o número aproximado de cogumelos conhecidos no país, com 100 espécies silvestres comestíveis ocorrendo apenas no estado de São Paulo, sendo que a Mata Atlântica é o domínio fitogeográfico com maior número de registro de fungos no Brasil”.
Eu nasci no sudeste mineiro, onde a Mata Atlântica domina. Mas, infelizmente, mesmo na época das chuvas, nas feirinhas e supermercados geralmente só encontro a tríade suprema paris-portobello-shimeji. Quando muito, aparece o cogumelo eryngui, hiratake ou o shiitake. Segundo as pessoas com quem conversei no Twitter, essa repetição se mantém em outras cidades do Brasil.
O consumo definitivamente não é acessível para todos e também não é tão difundido, apesar da biodiversidade brasileira. A verdade é que, a cada dia que passa, os supermercados populares estão deixando de vender comida fresca para comercializar apenas produtos ultraprocessados — mas esse problema grave é assunto para outro texto.
Alguns produtores de fungos já me responderam que não cultivam outras espécies por falta de interesse dos clientes ou impossibilidade climática. Apesar de todos esses fatores impeditivos, eles sentem que os cogumelos estão se tornando cada dia mais populares, até em razão do cultivo - e o interesse das pessoas - estar aumentando a olhos vistos.
Meu amigo Roney, responsável pela empresa @docaminhante, sediada em Belo Horizonte, me contou há alguns anos atrás que o investimento para cultivo pode ser relativamente baixo, o problema maior é o espaço disponível para manter estufas, a depender da situação de quem produz.
Além do Roney produzir cogumelos em estufas para vender de forma direta aos clientes e nas feirinhas da cidade, também vende uma matéria orgânica preparada para quem quer cultivar em casa. No segundo caso, ele esporula nessa matéria fungos específicos e coloca tudo em baldes firmes ou sacos reforçados de plástico, que ele chama de “sacoíno” e comercializa a R$40. Buracos são abertos nesses baldes e sacos e, depois que os micélios vão se formando (parte que fica debaixo da terra), o corpo externo do cogumelo vai “florescendo” e pimba: estão prontos para consumo.
Para manter o sacoíno brotando, basta ir molhando os buracos com um borrifador cheio de água filtrada pelo menos duas vezes por dia - cogumelos precisam de umidade. Cada sacoíno costuma render quilos de cogumelo a cada nova brotagem. Mas essas brotagens não duram para sempre, pois o ambiente é artificial.
Estes são os cogumelos que eu cultivei em casa dentro do sacoíno do Roney, foto por @taiobabrava
A quem se interessar, a Alene de Godoy, do @afroecologica, deu uma baita aula sobre fungos nesse episódio que gravou com @outrasmamaspodcast. Ela também ensinou neste post a identificar três espécies de fácil recorrência (claro que tudo depende do lugar onde você se encontra).
E para fechar o papo, repasso a indicação de um livro que a amiga Maria Fernanda (@cozinha.ambua) me emprestou: “Ana Amopö: Cogumelos Yanomami: Enciclopédia dos Alimentos Yanomami (Sanöma)”. A publicação é o resultado de uma pesquisa na Terra Indígena Yanomami, extremo oeste de Roraima. O prefácio é de ninguém menos que Davi Kopenawa Yanomami, e essa passagem me chamou atenção:
"Na minha língua yanomae cogumelo é ara amoku. Desde tempos imemoriais os nossos ancestrais comiam cogumelos, principalmente quando eles não encontravam caça. Quando não encontravam caça e os cogumelos estavam nascendo, os antigos coletavam e comiam com bananas e beiju. Assim faziam os antigos, e assim fazemos ainda hoje. Eu mesmo, quando não encontro caça, quando estou andando pela floresta e vejo os cogumelos, eu os coleto, embrulho em folhas e faço um pacote para assar na brasa. Assim como os antigos comiam, nós continuamos comendo os alimentos da floresta (…)”.
Além do embrulho em folhas braseado que o Davi cita, que depois é comido com beiju de banana assada (imagina essa delícia, minha gente!), há também um registro de cozimento dos cogumelos em água com pimenta fresca e sal até virar um caldo saboroso. Eu babo só de pensar nesse frescor todo.
O livro destaca a importância das florestas ficarem em pé para que os valores indígenas sejam mantidos e a cultura dos cogumelos comestíveis seja repassada às próximas gerações. Esse é um dos motivos pelos quais pretendo me tornar a pessoa que se dedica a estudar a arte de reconhecer cogumelos e não tem medo nenhum de tirá-los dos troncos, matas e florestas para fazer receitas sem fim. Enquanto não acontece, vou criando pratos com essas espécies maravilhosas que ando cultivando por aqui.
Cogumelos confitados
Ingredientes*
400g de cogumelos de sua preferência
1 cebola, de preferência roxa, fatiada finamente
2 dentes de alho picados finamente
1 beterraba cortada em tirinhas
1 cenoura pequena sem casca em fitas (corte com a ajuda de um descascador de batatas)
Pimenta preta a gosto (ou qualquer outra especiaria de sua preferência)
Tomilho limão a gosto (ou qualquer outra erva que desejar)
1 cl. (sopa) de sal ou sal a gosto
Azeite o suficiente para cobrir ⅔ dos ingredientes (é possível baratear a receita usando uma parte de óleo vegetal)
*Usei 1 xícara de feijão mungo (moyashi) germinado, mas é opcional!
Como fazer
Leve os ingredientes a um tabuleiro, espalhe bem, salgue, acrescente as especiarias e ervas que desejar, depois regue com azeite até quase cobrir. Os cogumelos depois de assados vão murchar bastante, então não precisa cobrir tudo. Misture delicadamente e leve ao fogo baixo (180º) por mais ou menos 40 minutos.
Espere esfriar e guarde num pote de vidro higienizado fora da geladeira. Saiba que, se levar à geladeira para a receita durar mais tempo, o azeite vai solidificar, mas não tem problema algum, é só tirar de lá um pouco antes de consumir.
Vai um sotaque mineiro aí?
Sou emocionada na vida, então nem tento fingir costume: quando o Tiago Belotte me escreveu perguntando se eu topava falar sobre criação de conteúdo e cozinha no podcast Alma, que ele grava junto com a escritora Ana Holanda, dei uma dançadinha pela sala. Adoro o trabalho e a escrita da Ana; já até indiquei um livro dela em uma das edições passadas. Fofoquei com eles sobre meu processo criativo dando bastante risada — confesso que reacendeu em mim o desejo antigo de colocar no mundo um podcast! Quem sabe um dia?
Também conversei com a pensadora e cozinheira Naomi Mayer, do @fomedeentender. A conversa com ela é uma extensão dessa prosa toda sobre os fungos.
Curtas para assistir
O músico e artista Rafa Castro lançou o curta Teletransportar, pensado por muitas cabeças. Um trabalho tocante que olha para o cotidiano de um entregador que costura a cidade de bicicleta com sua mochila vermelha carregando, muitas vezes, a comida que não pode comer. Já voltei mil vezes para ver o desespero e a beleza daquela dança no corredor. O Rafa é meu cunhado, mas eu sou uma fã para além do carinho fraternal.
Foto da Lorena Dini (@diniloris)
Outra delícia para os olhos e outros sentidos, que inspirou a criação de um prato que em breve vou compartilhar pelas redes: este curta do cozinheiro Enrique Olveda sobre os moles mexicanos, que eu achei depois de pesquisar bastante sobre os tacos. Essa pesquisa apareceu na minha vida depois de ficar absolutamente influenciada por Na Rota dos Tacos, disponível na Netflix, que também recomendo.
Um convite para conhecer melhor as cozinhas regionais no Brasil
A Malu, do @comendoplantas, me chamou para integrar o corpo de professores da terceira edição do Grupo de Estudos que ela fomenta. Eu adoro tanto o trabalho dessas pessoas que inclusive fui uma aluna pagante do primeiro curso, então está sendo uma honra participar da atual edição. Preparei uma aula incrível sobre a cozinha vegetal mineira! Para entender como o evento vai funcionar, é só clicar aqui. A primeira aula acontece já no dia 12/10, terça-feira agora, às 19:30hs. Temos bolsas para pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+ e em situação de vulnerabilidade, é só mandar um DM pra @comendoplantas para entender como funciona :)
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Outro jeito de ajudar é compartilhando o Jornalzinho com os amigos que se interessam por comida!
Quem trabalhou nesta edição:
Revisão do texto: Maria Fernanda Ambuá (@cozinha.ambua)
Diagramação e desenho: Eduardo Albuquerque (@comidailustrada)
Fotografia dos cogumelos e receita: Luiza Bongir e Izadora Delforge (@taiobabrava)
Pelas redes
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Blogue: cebolanamanteiga.com
Twitter: @cebolamanteiga
Com amor e com fome,
Carolina Dini
Muito obrigado pela aula!