Fiz uma oficina de escrita de contos no primeiro semestre deste ano e foi aí que conheci o trabalho da Bruna Kalil Othero, uma poeta quentíssima e contemporânea. Quentíssima porque a danada tem uma capacidade de costurar em seus textos lambuzados dois elementos que eu gosto: pornografia e comida - coisas que titio Freud explica através das pulsões de vida e de morte.
A Bruna, ou simplesmente “BKO”, como ela mesma se intitula, estuda a escritora Hilda Hilst, uma das mulheres mais autênticas de quem tive notícias nos últimos tempos. Ela, que nos deixou em 2004, falava o que bem entendia em suas entrevistas, desafiava a elite de escritores homens brancos púdicos de sua época e, depois de ouvir muito “não” do mercado editorial, conseguiu publicar seus livros, sempre fazendo duras críticas ao modo de vida imperial reproduzido pela nossa sociedade.
Aos 36 anos, largou a vida agitada de São Paulo para viver no mato rodeada de livros, cachorros e amigos com diferentes linguagens literárias. Para ser lida e comentada, escreveu O Caderno Rosa de Lori Lamby, que narra a história de uma menina que, com o aval dos pais, resolve se prostituir. Nessa entrevista Hilda conta que se sentiu pouco entendida durante a vida profissional e que sempre era chamada de “puta” e “louca”.
Vou colar aqui um pedacinho da carta aberta que a Bruna, durante essa pandemia, escreveu à Hilda:
“tá todo mundo preso em apartamentos minúsculos que nem batem sol (...), viramos sardinhas doentes (...). Queria muito ler uma crônica sua sobre 2020, seria engraçadíssima, trágica e jogaria um ponto de luz em meio a tantas trevas”.
Esse texto da Bruna bateu forte em mim, pois o li bem na época em que andei fazendo uns exames de sangue e descobri que estava com muitas vitaminas baixas por causa de umas tretas menstruais que já se alongam há meses, e também pela falta de sol. Em meio a isso tudo, comprei o livro Anticorpo, da BKO, publicado pela Letramento, onde ela aborda temas como menstruação, desejo, sexo, pele, corpo. Vou trasladar meu poema preferido, com a autorização da autora:
Soneto em trânsito
Acordei. Fiz xixi e cocô no vaso,
passando meus olhos pelo jornal
da manhã: só desgraça a curto prazo.
Me esqueço um minuto depois. Banal.
Meu profundo desleixo é mesmo raso,
pois sujo minha cara de mingau.
Telefonam. Estou fora do prazo.
Não tenho tempo para nada. Vou mal.
No ônibus, me chamam de salafráfio.
Hoje o chefe me mata. Atrasei.
Só por favor não atrasa o meu salário.
O dia foi bem cheio. Trabalhei.
Pra escrever, fiz uma brecha no horário.
Tou morrendo. Cólica. Menstruei.
Aqui você pode baixar gratuitamente o livro Em Torno, de Hilda Hilst, e, quem sabe, também se apaixonar por essas mulheres.
Organizar a vida segundo os ciclos menstruais: só para tilelês brancas alienadas ou ferramenta milenar silenciada pelo patriarcado?
Sou uma autônoma privilegiada por poder agendar compromissos de acordo com meus ciclos menstruais, coisa que só consegui fazer depois de ler bastante sobre a ginecologia natural e passar raiva colocando alguns conhecimentos em prática ao longo dos últimos anos. Nessa área tem muita romantização da rotina: definitivamente não é pra mim, por exemplo, anotar diariamente meus sentimentos numa “mandala lunar” ou “plantar a lua”. Adoto poucas e boas práticas que têm mudado a relação que construo diariamente com o meu corpo.
Dentre todas elas, a mais importante: anotar a cada semana na minha agenda - e também no meu planejamento alimentar - em qual fase da menstruação estou, para aceitar melhor as oscilações hormonais e de temperatura corporal, além das famosas variações de humor. A semana número um é marcada pela descida do sangue e as quatro fases são: “menstruação”, “pós-menstruação”, “ovulação” e, finalmente, “pré-menstruação”.
Algumas amigas que não ciclam regularmente, como eu, conseguiram perceber, depois de alguns meses, as diferenças entre as semanas. Essa observação não garante tarefas bem distribuídas todo mês, já que fatores externos às vezes me tiram do prumo em certas situações. A vida é totalmente dinâmica, e planejar tem muito a ver com aceitar esses movimentos imprevistos.
Mas em geral essas anotações muito simples me ajuda a não querer planejar, por exemplo, testes infinitos de receitas inéditas na semana da menstruação, pois sei que, se elas derem errado, vou deitar no chão da cozinha em posição fetal, questionar todo o meu trabalho e possivelmente chorar três litros. Quando consigo, deixo a fase de testes para a ovulação, quando o corpo está mais forte e não sinto dores.
A escrita, ou qualquer outra tarefa que exige recolhimento, fica para a semana em que estou sangrando. As Consultorias de Planejamento Alimentar, por exemplo, que dependendo da contratação rendem conversas on-line de quase três horas, ficam para as semanas da pré-ovulação e ovulação, quando minha energia está alta e estou de bom humor.
É claro que às vezes pintam trabalhos urgentes que bagunçam minha dinâmica, mas em geral consigo dividir bem as tarefas assim.
Tenho acompanhado pessoas que menstruam que também estão mudando a forma de organizar a rotina só adotando esse hábito de colocar ali, no cantinho do calendário, o nome da fase, ainda que não consigam fazer a própria agenda por milhões de motivos diferentes. No fim das contas, se você quiser adotar essa prática, e a partir disso conseguir deslocar uma ou outra tarefa, já está valendo. Tenho cultivado a esperança de que um dia nossa sociedade vai falar sobre sangramento sem tabus.
A @carolito.hq, cujo trabalho recomendo muitíssimo, publicou no Instagram uma tirinha genial que resume muito do que falo sobre menstruação durante minhas aulas:
Se os homens cis menstruassem, nenhuma pessoa na sociedade seria obrigada a tomar decisões durante a TPM, não trabalharíamos tanto com sangue descendo, não haveria pobreza mentrual e absorventes seriam distribuídos no posto de saúde, dando o mínimo de dignidade menstrual a todes. Afora que o sistema não obrigaria ninguém a produzir da mesma maneira 07 dias por semana, e chefes levariam em consideração as oscilações hormonais na hora de distribuir tarefas.
Para entender mais sobre o tema e, quem sabe, tentar planejar as próxima semanas de acordo com os ciclos menstruais, vamos de recomendações:
Para ler:
Origem do mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado, da Liv Strömquist.
Para assistir:
Absorvendo o Tabu, da diretora Rayka Zehtabchi.
Pad Man, baseado na história real de Arunachalam Muruganantham.
Esse TED com o próprio Arunachalam, que me fez comprar um pacote de absorvente todas as vezes em que vou ao supermercado para doar a alguma pessoa em situação de rua.
O documentário Taboo menstruation - The worldwide fight for equality.
Notinha de rodapé
Comecei a escrever esta edição do Jornalzinho antes da pobreza menstrual virar tema de importantes discussões no último mês, quando o Bolsonaro resolveu vetar a distribuição gratuita de absorventes para estudantes de baixa renda de escolas públicas e pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade extrema. Se menstruar já é difícil, imagina sem o mínimo de amparo? Tenho sempre que ficar me lembrando que a recusa de entrega de direitos básicos por esse governo não pode ser motivo de calar discussões importantes, senão a gente empurra os limites de aceitação e o mínimo vai ficando cada vez mais distante.
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Acabo de abrir as últimas vagas do ano para quem tem interesse em planejar e organizar a vida alimentar, do feitio otimizado da lista de compras à cozinhança, sem um pingo de romantização dos processos domésticos! O objetivo da minha Consultoria de Planejamento Alimentar é entender sua rotina e encontar as melhores soluções para cozinhar mais em casa - um investimento dos bons no eu do futuro! - e assim ter mais tempo livre fora da cozinha!
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Quem trabalhou comigo nesta edição:
Revisão do texto: Maria Fernanda Ambuá (@cozinha.ambua)
Diagramação e desenho: Eduardo Albuquerque (@comidailustrada)
Pelas redes
Blogue: cebolanamanteiga.com
Twitter: @cebolamanteiga
Com amor e com fome,
Carolina Dini
Estou fazendo uma “faxina” no meu e-mail e parei pra ler essa edição do jornalzinho. Que carinho nas suas palavras, Carol! Me inspirou a querer escrever uma newsletter sobre psicanálise e saúde mental, quem sabe, né? Que seja um ano bom, do lado daí! Abraço!