Numa conversa com a Babi Amaral, atriz aqui em Belo Horizonte, ela disse não aguentar mais ver nas redes sociais uma receita pronta em três estalos de dedo. “É irreal, me dá taquicardia, eu não cozinho tão rápido assim”. O tempo da cozinha é realmente outro.
A frase da Babi foi dita assim que cheguei da visita que fiz à Dona Beth dos Licores, uma senhora que mora em São Joaquim de Bicas, Minas Gerais. Fui fazer tal visita graças à Patty Durães, pesquisadora da cozinha brasileira e dona de casa, mulher que eu admiro muito.
Beth planta diversas espécies de vegetais e com esses insumos faz os mais variados licores: pequi (meu preferido), jabuticaba, canela e cravo, pimenta e por aí vai. Algumas frutas passam três anos curtindo na cachaça, e depois essa cachaça perfumada, já coada, é misturada com a calda de açúcar que ela faz sem receita, mexendo e experimentando a cada vezada. Alguns são super doces, outros nem tanto: tem licores para todo gosto.
Ela trabalha junto com a irmã, Márcia. As duas operam um sistema de abastecimento dos clientes da cidade contando com a ajuda da família. Por vezes, participam das feiras mais próximas. Lidam com a terra, com o ciclo das plantas, descobrem novas ferramentas para aguar a jabuticabeira, alimentam as galinhas com as sobras dos fazeres culinários e, sempre que podem, passam a mão na cabeça dos cachorros.
Têm compotas fermentadas, pimentas curtidas no licor e até a clássica conserva de batatinhas para servir as visitas. Nos dias de feira, como os que presenciei, juntam os sobrinhos para carregar a caminhonete com caixas incontáveis de licores. Elas prestam atenção em tudo no entorno.
Sempre que visito uma cidade interiorana, como essa, me dá impressão que o tempo lá corre diferente. A caixa do supermercado primeiro organiza com a maior calma do mundo as moedas que o outro cliente usou para pagar o sorvete antes de me atender, ainda que depois de mim não tenha mais ninguém na fila. O frentista não economiza o tempo dedicado à zoação quando o colega tropeça: o cliente que espere. O pipoqueiro, mesmo com bastante pipoca pronta no carrinho, quando gosta do comprador, começa a estourar milho do zero, só para alongar a conversa.
João do Rio tem uma crônica que se chama “A Pressa de Acabar”, e esta passagem ilustra bem a inquietação que apareceu ao me deparar com esse tempo interiorano:
Em tudo, essa estranha pressa de acabar se ostenta como a marca do século. Não há mais livros definitivos, quadros destinados a não morrer, ideias imortais, amores que se queiram assemelhar ao símbolo de Philemon e Baucis. Trabalha-se muito mais, pensa-se muito mais, ama-se mesmo muito mais, apenas sem fazer a digestão e sem ter tempo de a fazer. (…) Evidentemente nós sofremos agora em todo o mundo de uma dolorosa moléstia: — a pressa de acabar. Os nossos avós nunca tinham pressa. Ao contrário. Adiar, aumentar, era para eles a suprema delícia. (…) Antigamente, calcular a passagem das horas era tão complicado como calcular a passagem dos dias (…) Hoje, nós somos escravos das horas, dessas senhoras inexoráveis que não cedem nunca e cortam o dia da gente numa triste migalharia de minutos e segundos. Cada hora é para nós distinta, pessoal, característica, porque cada hora representa para nós o acúmulo de várias coisas que nós temos pressa de acabar.
Estou fazendo um exercício para minimamente parecer com as pessoas com quem encontro nas cidades pequenas: muitas parecem ter a sabedoria de não pensar tanto em estratégias para economizar o tempo. No fundo, elas não servem à utilidade das coisas.
E isso não quer dizer que trabalhem menos que eu, ou sejam necessariamente mais bem resolvidas do que qualquer outra gente que viva nas grandes cidades. O fato é que esse tempo alongado me fez querer prestar mais atenção nas coisas, digerir melhor as refeições e os acontecimentos, escutar olhando nos olhos, sem pressa de acabar para checar o celular — ainda que eu ande distraída demais para isso.
Processos criativos lentos
O Tira do Papel é uma conta no Instagram que me ajuda bastante a criar conteúdo para as redes. Numa das edições da newsletter que o Tiago enviou este ano, ele comenta que em dado momento uma amiga chamada Mona validou uma ideia que ele tinha: criar infográficos lúdicos e intuitivos, ainda que o resto do mundo dissesse que não iria funcionar. No fim do texto, ele provoca: quem é sua Mona?
Essa pergunta me fez retornar às origens do por que estar na internet, manter uma rede e criar vínculos com pessoas que nunca estiveram comigo presencialmente.
Eu tenho duas Monas, que nortearam o trabalho que faço hoje: a primeira, pessoa próxima, é a Yasmim, planejadora, empresária e consultora à frente da empresa Flor de Mim, que ela toca junto com sua família. Ela ocupa várias redes produzindo conteúdo gratuito sobre planejamento de metas diversas de uma maneira humana, que valoriza o descanso e o ócio.
Um belo dia ela me falou algo mais ou menos assim: por que você não ensina as pessoas a se organizarem na cozinha, a colocarem a dieta delas em prática através de uma ótica não nutricional, a entender a construção dos sabores, organizar os armários, comprar utensílios? Você é a única pessoa que conheço que fala sobre isso com humanidade, sem gordofobia ou produtividade insana.
Lá se vão três anos desde que prestei a primeira Consultoria, e hoje a própria Yasmim organiza a alimentação usando meu método. O meu ponto é que, quando comecei, estava morrendo de medo, e ainda tomei hate de várias nutricionistas que achavam que eu estava operando o trabalho delas sem ter diploma… Mas a coisa nunca passou por aí. Quando consegui comunicar melhor o que faço, as coisas fluíram.
Minha segunda Mona é o Eduardo Amuri, consultor financeiro e planejador. Ele consegue, no mesmo texto, associar receita de tapioca fresquinha com ferramentas para planejamento financeiro. Uma oficina em grupo que fiz com ele há alguns anos atrás mudou o rumo da vida da Carolina trabalhadora, pois me ajudou a organizar as finanças para largar de vez a vida de advogada empresarial que cumpria quarenta horas semanais e não aguentava mais ter patrão.
Minhas Monas me inspiraram a seguir minha vontade de ser, ao mesmo tempo, uma consultora, cozinheira e escritora. Eu jurava que precisaria no mínimo de um diploma gastronômico ou de nutricionista, mas eu vi que a minha jornada na cozinha e a sustentação dos meus desejos [e experiências] ultrapassam práticas acadêmicas (que eu amo): estão nas tradições orais que muitas vezes se perdem na receita de família, na mescla de conhecimentos que adquiro fuçando sites em outras línguas, nos meus testes diários, no retorno das pessoas que fazem as receitas e me seguem, no comer o mundo.
De alguma maneira, acho que escrever (de preferência num A3), esperar e comunicar organiza a cabeça da gente.
Oficina de lanchos vegetais em Beagá
No dia 24/09, sábado, vou fazer no Espaço Casca a oficina “Lanchos vegetais”. Percebi que a maior parte dos meus alunos da Consultoria de Planejamento Alimentar chegam com dificuldade de incluir no café da manhã, no café da tarde e no lanche noturno opções vegetais realmente gostosas. A ideia é trazer para o prato receitas práticas, com algumas técnicas que passam pela fermentação básica de vegetais, cereais e leguminosas.
Quem quiser participar: é só clicar aqui!
No mais, sigo prestando essas Consultorias para pessoas cansadas, e só não divulgo mais o resultado desse trabalho nas redes pois os atendimentos passam pela intimidade doméstica das pessoas. Me chamem!
Com amor e com fome,
Carolina Dini
Revisão de texto: Nina Rocha
Diagramação e ilustração: Eduardo Albuquerque
Carol, sempre um prazer imenso ler as suas palavras.
Eu amei a sua reflexão. Ando bem nessa frequência tambem.
Quando penso nisso, sinto que tem um medo básico muito potente que norteia nossa cultura. Pode reparar, somos bombardeados diariamente pela ideia de que tudo é imperfeito e precisa ser corrigido, padronizado, apressado ou você não está extraindo tudo que pode.
A visão de respeito, amor e entendimento quase nunca nos atravessa. Não nos relacionamos sob a ótica da reverência, da paciência, de nos rendermos ao que as experiências pedem e proporcionam. Existe essa neurose de que as coisas que tem que se dobrar e deixamos isso transbordar e contaminar tudo.
No fundo, eu acho que a gente desvirtua as atividades porque tem muito medo da palavra e da experiência de processo, de admitir que somos parte e que é natural que o tempo passe, a idade chegue e que essa vida também vai deixar de existir, junto com tudo o que compõe isso que eu eu acredito ser eu. E aí, a gente vai se agarrando a esses minutos, preenchendo com tudo o que dá, como se a gente não estivesse acelerando em direção à morte do mesmo jeito. Rs
Obrigado pela reflexão. Amo seus textos. 💕
que lindo está este jornalzinho. foi uma pausa de deleite ;)