Meus bisavós maternos, Luís e Maria Antonieta, vieram como refugiados da Primeira Guerra lá de Veneza para o interior de Minas Gerais. Tiveram que deixar para trás filhos que jamais voltaram a ver, eram analfabetos e não tinham um centavo no bolso. Viveram a vida plantando cana para produzir melado e rapadura. Também plantavam a fruta mais gostosa do mundo, manga ubá, e vendiam toda a produção ainda verde no pé. Minha tia Aparecida conta que a maior tristeza que teve num verão foi a proibição de pegar frutas direito da mangueira carregada, pois já estavam todas prometidas para um cliente.
O tempo foi passando e essas pessoas, que nunca tiveram a oportunidade de registrar em cadernos suas memórias, perderam as histórias através das gerações. Tia Aparecida me ensinou a fazer um cajuzinho de amendoim que sempre estava presente nas festas de aniversário (depois descobri que é uma variação do cajuzinho realmente feito com caju, já que a fruta não é comum em Minas), e também me contou de uma broinha de melado de cana assada no forno de pedra, mas que ela, para minha tristeza, não sabe fazer. Também me falou que aos domingos sempre comiam arroz, tutu, macarronada e frango frito.
Os meus bisavós paternos tiveram uma história parecida: saíram da região da Emília-Romana na Itália e também vieram para Minas Gerais em condições de pobreza — pelo menos nunca passaram fome.
Mas o que comiam meus quatro bisavós no dia a dia? Qual era a receita responsável pelo auge da gostosura em dias festivos? Como se comprtavam à mesa? Tinham mesa? A falta de respostas me fez querer estudar a comida e a cultura italiana para entender um pouco mais sobre o espaço em que estavam inseridas essas pessoas, ainda que num recorte genérico e talvez apaixonado da minha parte.
Em março de 2019 achei uma passagem promocional e lá fui eu em companhia do meu companheiro com um roteiro gastronômico montado rumo à Emília-Romagna — mas sempre flexível, pois gosto de chegar nos lugares e ir descobrindo aos poucos o próximo destino, ainda que isso me traga mais situações desconfortáveis e evitáveis que eu gostaria.
Desci em Roma com meu italiano capenga do Duolinguo e de lá percorri outras muitas cidades, saindo do centro em direção ao Sul e depois ao Norte, por trinta dias.
Em Modena, visitei lojas que produzem os badalados acetos balsâmicos e conheci o mercadinho com muitos vegetais e produtos agroecológicos onde o chef Massimo Bottura faz compras. Em Nápoles, andando pelas ruas de trânsito caótico e muita arte pelas paredes, pensei várias vezes na incrível capacidade descritiva da escritora Elena Ferrante enquanto cumpri o auge do clichê turistão ao comer na pizzaria onde a Julia Roberts gravou uma cena de “Comer, Rezar e Amar”.
Andei por todas as ruas de Siena tomando chocolate quente e entrei em cada biboca que se descortinava pelas esquinas em busca de ingredientes frescos. Conheci Monteriggione, a cidade das quatorze torres que inspirou Dante a escrever “O Inferno” da Divina Comédia e tomei vinhos produzidos por monges aos pés dessas torres.
Em Florença aprendi a fazer papa al pomodoro, uma espécie de sopa de tomates com pão dormido (que a Lena Mattar ensina muito bem nesta receita), e também ribollita, uma sopa riquíssima que leva feijão. Nessas misturas acho que nós, brasileiros, somos bastante parecidos com os italianos.
Foi também em Florença, depois de dar uma volta enorme de bicicleta pela cidade, que conheci Rocco, um senhor que se autointitula “Mago Merlino”. Ele me ensinou a fazer um drinque super fresco de limão que eu carrego no coração, e, se não me falha a memória, já contei isso por aqui. Foi ainda nessa cidade que tomei um sorvete de gergelim negro de cair o queixo e me perdi pelos belíssimos mercadões.
Finalmente em Veneza, a cidade mais ao Norte da Itália no meu trajeto, passei horas tentando (em vão) puxar papo com os vendedores do antigo Mercati di Rialto. Não tive êxito em ter prosas longas com as pessoas — acontecia uma desconfiança enorme diante de tantas perguntas, e não era para menos.
Provavelmente nunca vou conseguir descobrir como viviam meus bisavós. Gostaria muito de saber como eram as mesas e as cadeiras onde eles se sentavam para comer, pois esses móveis muito me importam. Meu avô paterno era marceneiro, meu marido é marceneiro, e acho impressionante como esses móveis dizem muito sobre o modo de vida das famílias, pelo menos aqui no ocidente.
De todas as experiências na terra da bota, talvez a que mais tenha me tocado foi a visita à Pompéia, cidade próxima a Nápoles, que foi soterrada por cinzas do Monte Vesúvio numa noite em que esse vulcão entrou inesperadamente em erupção, varrendo o teto de todas as casas e dizimando a população. A explosão aconteceu em 79 d.C., e o soterramento da estrutura física da cidade a manteve preservada, o que permitiu até hoje grandes descobertas sobre o modo de comer daquelas pessoas.
Botei reparo com atenção em tudo que fazia parte da cozinha: havia muitos fornos públicos, alguns intactos, onde as pessoas iam para assar pães coletivamente. Um escavador que trabalhava no local me contou que cada fornada era marcada com um símbolo, para distinguir seus donos e os pães não serem confundidos. Se haviam roubos das fornadas? Ele não soube dizer.
Os fogões e utensílios, pelos tamanhos, mostram que haviam refeições coletivas, o que mais tarde confirmei com os guias locais. Fico imaginando todos aqueles adornos, vasos enormes onde vinho e água eram armazenados, taças de cobre e fornos imensos trazidos das escavações.
As cozinhas são por vezes facilmente esquecidas, mas ali não: parece que guardavam um lugar especial no cotidiano das pessoas. As casas mais ricas, é claro, tinham adornos especiais, muitos tons na parede, azulejos em mosaicos inacreditáveis, com cores especiais que ainda resistem a tantos séculos.
Na noite da erupção, o que será que faziam as pessoas? Estavam indo levar um pão para o vizinho? Estavam fodendo, bebendo, cantando? Alguém estava sentado na porta de entrada da casa fofocando? Fumavam naquela época? O que pensaram aqueles que morreram com o corpo exposto nos banheiros públicos? Será que deu tempo de pensar em alguma coisa? O que comeram pela última vez? Comeram por que queriam ou por que não tiveram outra opção? Havia algum aroma de comida no ar naquela noite?
Eu não tive essas respostas, tampouco encontrei vestígios sobre as histórias dos meus avós, à exceção da certidão de nascimento do meu bisavó paterno, que achei numa prefeitura depois de uma saga inacreditável em cidades pequeninas onde fiz o maior esforço da minha vida para me fazer ser entendida.
Pude, no máximo, ver com olhos de turista apaixonada alguns dos costumes locais. Falhei como investigadora da árvore genealógica, mas trouxe comigo a importância de viver a vida sempre ciente da morte iminente, venha ela através da pandemia, velhice, desgosto ou de um vulcão.
O que importa (cosendo aqui minhas ideias): estou viva e quero banquetear, tomar o vinho que antes ficava guardado esperando ocasiões especiais, correr até onde as pernas não aguentarem, conhecer o tempero dos cozinheiros que admiro, tomar água de coco num dia ensolarado, ler todos os livros que conseguir e ouvir com muito carinho as histórias das pessoas que amo, ainda que de máscara, ainda que ciente de que a pandemia não acabou e tanta gente continua sendo vítima desse governo genocida.
Cansei de ter medo de morrer — e de, na época depressiva, de querer morrer —, e agora vivo como uma hedonista citando Epicuro: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”.
Mesa posta
Enquanto escrevia o jornalzinho do mês, recebi da minha aluna Denise, que é arquiteta, o texto Pôr a mesa: reflexões ilustradas sobre o elemento central da vida doméstica, por Florencia Köncke e Paula Olea Fonti, traduzido por Julia Daudén. Trouxe dois trechos para cá, para complementar a leitura.
“A mesa está presente como um elemento de união em incontáveis celebrações populares. Natal, Páscoa ou aniversários são eventos para os quais a mesa é preparada com antecipação e entusiasmo. A mesa está vestida para o evento especial. Quando nos reunimos como família ou na sociedade, a ideia da mesa como espaço de relacionamento é reforçada. Na cultura ocidental, a domesticidade acontece em torno de uma mesa rodeada de cadeiras; em alguns lugares do Leste, é uma mesa baixa que reúne as pessoas sentadas no chão. Em casos mais extremos, como em algumas celebrações na cultura muçulmana, elas acontecem em um tapete específico. O tapete suporta tanto os alimentos quanto os comensais. Qualquer que seja a superfície, é o ato de comer que une as pessoas”.
“A domesticidade sai para a rua através do objeto. Ela encontra a mesa fora de sua esfera habitual. Pode-se ver na rua uma série inumerável de ações que acontecem no ato de comer: alguns comem de pé nos balcões provisórios, outros o fazem sentados em bancos ou escadas, alguns em mesas colocadas nos terraços dos bares, outros levam os móveis do interior da casa para a calçada. Em todos os casos, a mesa viaja para fora e se expõe e a seus habitantes ao olhar dos outros”.
Sorteios do mês
Sorteio é cringe e talvez brega… Eu sei. Mas lembro que na época da escola ganhar um lápis que custava centavos no sorteio promovido pela professora já era motivo suficiente para sorrir, e é com essa mentalidade que seguirei divulgando o trabalho de pessoas e marcas interessantes. Vamos aos prêmios:
A consultora Mafê Verdiani (@mafeverdiani), que fundou o projeto “verdi | hortas, jardins comestíveis e sustentabilidade”, oferece consultoria para quem quer cultivar jardins comestíveis em casa, mas não sabe por onde começar. Imagina que sonho ter alguém guiando a gente nessa, para não cair na pegadinha da costela de adão a centenas de reais, entender qual planta fica boa em que cantinho, se deve ser exposta a pouca ou muita luz? Quem ganhou uma vaga totalmente grátis foi a Yollanda Arruda. Tô torcendo pra Yollanda ter espaço para cultivar umas ervas em casa, ainda que em vasos suspensos, como eu faço em muitas paredes aqui no meu apartamento!
Já a artista têxtil Ana Elisa (@anaemquadros) ofereceu uma de suas artes para sortear aqui. Ela tece suas peças e quadros apenas depois de conversar com cada pessoa que a procura, criando algo a partir dos gostos e inspirações individuais. Achei isso super especial, também ganhei uma peça dela para pendurar na cozinha que estou montando neste momento. Quem levou uma obra para casa é a Clara Pereira. Aguardem meu contato!
No mês que vem tem mais sorteios e sigo aberta a novas parcerias. O único critério é ter um tema que passe pela cozinha. Se tiver interesse em aparecer aqui e quiser fazer essa parceria, me escreva :)
Vagas abertas para março: bora planejar a alimentação?
Sigo atendendo pessoas individualmente para planejar a alimentação investindo o mínimo de tempo possível na cozinha do dia a dia. Sinto prazer ajudando homens a colocarem em prática dietas nutricionais restritas, em entender como mães sem rede de apoio podem ganhar mais tempo para ir ao banheiro em paz, e, principalmente, em perceber junto com cada um os caminhos sinuosos dos processos que envolvem a criação de hábitos.
Meu método não é infalível, já que é experimental, e não científico. Vou anotando tudo que os alunos relatam e, depois de três anos prestando esse serviço, posso dizer que tem muita gente neste mundo sofrendo menos com a carga mental referente às tarefas domésticas.
Respeito o tempo de cada pessoa, os costumes e hábitos, além de sempre sugerir novas técnicas culinárias e receitas. A melhor parte é que não cobro produtividade, então a coisa caminha no tempo de cada um, sem pressa.
Para entender melhor meu serviço como Consultora, clica aqui para me dar um “Oi” e receber um PDF explicativo? Não há nada que eu goste mais de fazer e esse é meu maior investimento de tempo trabalhando.
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Revisão do texto: Maria Fernanda Ambuá (@cozinha.ambua)
Diagramação e desenho: Eduardo Albuquerque (@comidailustrada)
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Meus livros: Me Tempera Que Eu Gosto e Para Começar a Curtir: Fermentação de Vegetais
Com amor e com fome,
Carolina Dini
Carol.. lendo seu texto e a citação de Pompeia .. queria te dizer que existem dois livros Psicografados .. chamados ‘há dois mil anos ‘ e ‘50 anos depois’ não vou fazer spoiler .. mas se quiser saber sobre gostos e costumes da época e sobre Pompeia vale a pena a leitura … beijos !
Muito emocionante 💖💖💖💖💖💖💖