Lá se vão três meses desde a última vez que pintei na sua caixa de e-mail, e de lá para cá muitas coisas aconteceram na minha vida, não necessariamente nesta ordem: para promover eventos e dar oficinas gastronômicas, abri em parceria com uma amiga, aqui em BH, o Espaço Casca. Estou bem feliz de voltar a cozinhar em grandes proporções, amo uma panela gigante!
No mesmo mês lancei meu primeiro livro de poesia, Com os dois pés na cadeira, em Belo Horizonte e São Paulo. Rolaram entrevistas e estou feliz com os retornos de quem leu, de quem anda emoldurando as ilustrações contidas no livro — é delicioso ver minhas palavras ganhando o mundo!
Só que essa publicação, que passa tantas vezes por um lugar íntimo, me deixou literalmente sem palavras: todos os temas que tentei colocar no papel não fluíram e eu fiquei completamente travada justo na época em que a Revista Elle indicou o Jornalzinho como “newsletter que vale a pena assinar” e tantos leitores aqui chegaram! Já somos quase 5.000 pessoas, e é incrível pensar que a escrita resiste mesmo em tempos de vídeos e atenção picada.
Nesse meio tempo, depois de tanta exposição durante um período pandêmico recluso, me deparei com um diagnóstico de compulsão alimentar, e por causa dele não me considero mais vegana (esse tema mereceu um tópico especial mais adiante).
Mas agora estou de volta, gente querida, então pegue aí um copo d’água ou um café e senta que lá vem história :)
Ex-vegana é gente?
Cresci numa família super rígida, com uma criação permeada pelo medo. Tinha que me portar perfeitamente, não xingar, não usar roupas curtas, falar somente o necessário e ouvir as muitas horas de palestras que meu pai dava sem que nenhuma mulher da casa pudesse pestanejar. Introjetei que, para me colocar no mundo, precisava ser nada menos que perfeita, prever as exceções, saber argumentar, não deixar nada desandar e muito menos desmoronar. A autoexigência que vem desse lugar é doída e a faculdade de Direito só piorou as coisas, já que nós, advogados, somos treinados para enxergar as piores hipóteses e damos grande importância ao que pode dar errado.
A pressão dessa trilha hostil me fez olhar para outros rumos, mas ironicamente a necessidade de perfeição continuou me perseguindo, afinal, ela não está no outro, e sim na forma como eu enxergo as coisas. Estar na internet é estar exposta, e, meus amigos, se a gente não contextualiza o que diz, tudo vira motivo de represálias.
Quando comecei a estudar politicamente a alimentação, entendi que consumir produtos com animais nos ingredientes era não era só uma luta ambiental, mas também política, feminista, antirracista e muito mais! Senti-me na obrigação ética de deixar de comer qualquer pedacinho de comida ou produto que explorasse bichos. Tudo fez muito sentido para mim (e continua fazendo).
Antes do veganismo eu já estudava a comida vegetal por causa da minha intolerância à lactose e pelo interesse em ir além da culinária imposta pelo norte global. E aí passei a investigar mais ainda os vegetais e descobri novos sabores e técnicas que nenhum livro francês tradicional me ensinou! Percebi que dá para fazer de um tu-do com os vegetais e entendi que meu corpo passa muito bem, nutricionalmente falando, sem nadica de bicho.
Durante os anos em que me mantive vegana, nunca cogitei comer o pão de queijo feito pela tia da minha amiga uma vez por ano ou aceitar o pedaço da torta de maracujá que minha mãe sempre faz no Natal. Não havia exceções, ainda que o desejo pelas comidas com queijo e leite ainda morasse em mim.
O problema é que não consegui controlar minha cabeça: quando todos começamos a sair de casa depois da vacina, por algum motivo, nas palavras da minha psicanalista, esse meu desejo fez uma curva. Acho que teve um principal motivo: para compensar a falta de restaurantes amigáveis com pessoas veganas, eu comia desesperadamente antes de sair de casa e também depois, especialmente porque os lugares que frequento com amigos ainda estão longe de cogitar servir comida vegetal — na maior parte das vezes só me restava a batata frita ultraprocessada.
Afora a dificuldade de comer fora de casa, perdi as contas de quantas vezes deixei de trabalhar com criação de cardápios, por exemplo, por que a comida vegana ainda está no lugar de “comidinha”, ou de quantas vezes as pessoas me chamaram para palestrar sobre comidas “limpas e fitness”, como se comidas vegetais necessariamente fossem sem gordura e sem graça.
Fui cansando de explicar minha escolha e a relação política que o veganismo popular carrega consigo. Cansei e cada vez mais descontei na comida: comecei a comer um queijo vegetal inteiro de uma só vez para compensar a negativa em aceitar um bolinho de queijo num boteco, deixei de sair com pessoas queridas, perdi o tesão de viajar com pessoas não veganas, me fechei na exigência da minha necessidade de perfeição.
Descobri que essa compensação e os muitos episódios de compulsão alimentar não estavam me fazendo bem. E aí, ao me permitir comer as comidas com leite que chegam até mim, voltei pro meu eixo e o desejo pelas comidas não veganas diminuiu. No começo de julho minhas redes sociais pegaram fogo depois que tomei coragem e contei que voltei a consumir laticínios. Fui acolhida por muita gente, mas também tomei vários hates, como era de se esperar, afinal, eu estava sendo contraditória.
O mais importante disso tudo foi que novas discussões surgiram e acenderam em mim a vontade de falar sobre a busca pela perfeição dentro de um sistema capitalista que nos faz contraditórios. E só volto a tocar no tema pois perdi as contas de quantas pessoas veganas me escreveram dizendo que estão neste exato momento passando pela mesma situação que passei.
Teve a moça vegana que rebola para dar conta de três trabalhos dizendo que perdeu o tempo que tinha para cozinhar e está sofrendo por não poder aceitar o jantar que a empresa do turno da noite oferece. Seria ela menos vegana se comer o jantar duas vezes por semana, para poder dormir mais meia hora ao invés de ir para a cozinha?
Teve a mulher cozinheira, criadora de conteúdo e dona de uma página enorme contando que se mata para não comer o queijo artesanal de pequena produção que um senhor vende no seu bairro. Seria ela menos vegana ao experimentar esse queijo para criar e vender outro vegetal com sabor semelhante?
Teve o farmacêutico que cuida de vários animais resgatados que disse sonhar repetidas vezes com a avó oferecendo a receita de broa que ela fazia. A luta dele pela libertação animal teria menos valor se ele fizesse tal broa uma vez por ano e a comesse tomando um café coado?
Teve o senhor que abriu um negócio de comida vegetal livre de marcas ultraprocessadas que está se achando a pior pessoa do mundo por sentir vontade de comer a coalhada que sua tia leva para todas as festas de família, cuja receita permeia suas memórias de infância. Seria ele menos militante se cedesse ao desejo? E mais: o veganismo é um norte e uma luta coletiva ou uma luta individual?
Mesmo tendo seguido meu caminho baseado nos ensinamentos de veganos populares, eu preferi me declarar ex-vegana do que correr o risco de dizer que sigo vegana mas, de vez em quando, como um pãozinho de queijo. As pessoas em geral ainda associam o veganismo com famosos como a Xuxa e a Luísa Mell. E olha que durante o veganismo eu nunca segui nas redes veganos liberais que adoram impor condutas, mostrar bichos mortos e chamar de necrófilo quem come carne.
E, para a minha surpresa, muitas pessoas veganas ativistas que admiro me confessaram que abrem exceções extremamente esporádicas, como, por exemplo, aceitar comer um pedaço de torta que leva leite condensado no aniversário da melhor amiga. Achei o máximo, mas é uma pena que eu nunca tenha visto ninguém citando essas exceções. Acho que no fim das contas todas morrem de medo de serem canceladas, justamente pelo veganismo ainda vir com esse peso da impecabilidade.
Por isso, deixo um convite imaginativo para falarmos dessas exceções: se uma pessoa consome, em média, 4 refeições por dia, ao longo de um ano temos 1.344 refeições. Será mesmo que exigir uma conduta irretocável de quem ousa declarar o veganismo e escolhe todos os dias comer vegetais, mas, de vez em quando, por falta de possibilidade ou desejo, aceitar um naco de queijo é de bom tom? Eu acho que não — a menos que essa pessoa seja uma vegana liberal insuportavelmente cagadora de regras.
Acho que em todos os aspectos, não só alimentares, precisamos repensar o tanto que cobramos dos nossos e, talvez, reposicionar nossa luta: afinal, ela é contra a indústria ou contra o indivíduo? Ninguém é impecável e absolutamente ninguém peca por lutar como pode. E se a gente cobra perfeição diante de um desejo latente, optar pelo veganismo muitas vezes gera um fardo que pessoas cansadas não conseguem cogitar. Minha esperança é de que todos nós tenhamos coletivamente uma sociedade livre de exploração animal como norte.
Exceções planejadas
No planejamento alimentar as coisas oscilam: tem semana que a gente consegue executar os planos de ação, mas na seguinte o mundo vira de cabeça para baixo por mil fatores, seja ele o Brasil em ano de eleição, a menstruação, um trabalho novo (ou a falta dele), feriados prolongados que prometem descanso mas não entregam nada, a covid-19 de novo abrindo as asas…
Planejar as técnicas que vou usar para cozinhar em casa é tão importante para mim que não tenho como fazer tudo que faço sem jogar as ideias e um plano de ação no papel. Quem não é meu aluno pode pegar dicas de planejamento alimentar neste episódio, onde converso com o biólogo e nutricionista Pedro Ratton.
E também aqui, nesta conversa com o pessoal do Geraes Podcast, onde falo sobre novas formas de pensar a cozinha vegetal. Dei várias dicas e quero acrescentar que também é crucial planejar respiros: comer fora (seja no restaurante caro ou no trailer da esquina), jantar pipoca, pedir um deliverie ou simplesmente descongelar a base da sopa que o “eu do passado” cozinhou e no máximo rasgar por cima umas folhas frescas. Essas brechas não atrapalham em nada o resultado final do planejamento. Viva as exceções!
E se você quiser me contratar para invadir sua cozinha e dar conselhos específicos sobre utensílios, técnicas culinárias, receitas e novas formas de ver os vegetais, vem cá contratar minha Consultoria de Planejamento Alimentar, que dura meses, até as coisas tomarem jeito. Tenho 3 vagas para o mês de agosto!
5 convites para agosto
No dia 04/8 faço um jantar a quatro mãos em São Paulo, no restaurante @quincho.sp, a convite da chef Mari Sciotti. Teremos um menu degustação todo vegetal, com vários itens fermentados, harmonizado com bebidas especiais. Para reservas (R$160), clica aqui!
Já no dia 13/08, às 09hs, vou dar uma oficina gratuita sobre fermentação de vegetais no Festival Gastronômico de Itabirito/MG:
E no dia 15/08 guiarei, no mesmo Festival, uma conversa sobre a Cozinha Vegetal Mineira, onde também vou estar lançando meu livro de poesia:
Na data de 20/08 estarei em Tiradentes/MG realizando um jantar mineiro e todo vegetal com a chef Melissa Andrade no Restaurante Dengo! Nessa época vai estar acontecendo na cidade o 25º Festival Gastronômico pelo Fartura Gastronomia, e teremos vários festins promovidos paralelamente por chefs locais. A cidade estará em festa!
Por fim, a próxima oficina que darei no Espaço Casca é sobre fermentação de vegetais, no dia 28/08. Quem anima? :)
Com amor e com fome,
Carolina Dini
Carol, acompanho vc ha um tempo e admiro muito seu trabalho. Inclusive, o jornalzinho foi uma grata surpresa. Muitas vezes sou transportada a uma mesa no quintal acompanhada de um delicioso café coado quando o estou lendo, sendo essa cena hipotética ou real rs. E esse seu relato sobre o veganismo me caiu como uma luva, pois é o que estou passando no momento. Sou vegana há alguns anos e desde então não senti mais vontade de comer derivados de leite. Porém com o fim da pandemia e o retorno de atividades sociais, passei a ter os mesmos problemas quanto às refeições: ou comia muito antes de sair de casa ou depois, o que me fazia passar mal, ou me contentava com batatas fritas, visto que além de tudo sou bem pobre e as raras opções veganas são caras onde moro. Então por falta de opções ficava sem comer quando saia de casa e passava fome, e atividades ritualisticas de amizade que possuo, todas que giram em torno de comida, passaram a ser burocráticas e difíceis, provocando uma sensação de exclusão. O resultado foi uma compulsão alimentar e um desejo por comer laticínios ainda mais fortes. somente quando comi algo com derivado de leite a vontade amenizou e voltei aos eixos e seu relato me ajudou a compreender o que estava passando. Um grande abraço!
Que lindo, Carol. Admiro muito sua conduta em relação ao perfeccionismo exacerbado e espero que inspire muitas outras pessoas. Beijos!