Das coisas invisíveis
Quando eu tinha cinco anos, uma professora notou minha dificuldade de enxergar a lousa e aconselhou que minha mãe me levasse ao oftalmologista — o diagnóstico: “Carolina precisa usar óculos com lentes de menos cinco graus”. Chorei por três dias seguidos após o médico colocar a armação pesada no meu rosto. Imagine só enxergar o mundo de um jeito e, de repente, tudo mudar!
Meu caso ótico se agravou: em 2018, cheguei a menos vinte graus em cada olho, sendo que o esquerdo não é corrigido totalmente pelas lentes de contato.
Aos sortudos que têm visão de lince, explico o que significa menos vinte graus: sabe quando, num banho quentíssimo, a gente olha através do box e o vidro fumegado pelo vapor não nos permite diferenciar uma pessoa de uma toalha pendurada? É mais ou menos por aí... só que pior.
Espero que até a minha velhice haja tecnologia médica que garanta uma operação saudável — por enquanto, os oftalmologistas não se arriscam —, mas, até lá, decidi que vou continuar usando as lentes (e, muito eventualmente, os óculos, pois os detesto) enquanto a pesquisa científica nessa área não avança.
Sou a filha mais velha e minha mãe, descendente de uma família de refugiados italianos muito pobres, não tinha informações suficientes para lidar com minha condição visual. Ela me levou em todos os lugares possíveis que prometiam a “cura da minha doença”. Eu passava horas nas filas intermináveis de terreiros de umbanda e centros Kardecistas, onde me submeteram a várias “cirurgias espirituais”. Minha mãe realmente acreditava naquilo, meu eu criança, não. Cheguei até a me tratar com hipnólogos, mas, como vocês podem imaginar, a prometida cura não chegou.
Essas experiências, que reforçaram o trauma de a percepção sobre todas as coisas, somadas à chacota dos colegas da escola diante do meu “fundo de garrafa” me renderam uma dor psicológica que, segundo a Marina, minha psicanalista, talvez nunca seja superada totalmente.
O fato é que, quando criança, passava horas escondida na biblioteca da escola para fugir das aulas interativas e, consequentemente, dos meus colegas, que viviam me perseguindo. Gostava da aula de Artes, mas sempre matava a de Educação Física — morria de medo de tomar boladas na cara por causa dos óculos e “descolar a retina”. Lembro que, até uns sete ou oito anos, quando queria me esconder, tirava os óculos na tentativa de voltar para o espaço seguro e invisível da primeira infância, onde não havia nada daquilo. Era o lugar que eu conhecia. Sim, minha gente, tive uma infância doída e esse nem era o maior dos meus problemas.
Acho que minha obsessão com a literatura e as coisas bonitas vem do medo de perder completamente a visão e ter que depender de outras pessoas para fazer qualquer coisa. Esse medo se confirmou na época em que eu fazia um trabalho voluntário como ledora na biblioteca municipal. Tive um contato muito estreito com pessoas cegas, e a vida delas na nossa sociedade não é nada facilitada pelas políticas públicas.
Dessa coisa toda, surgiu uma necessidade imensa de usar a escrita para me expressar. Em 1999, época da popularização da internet no Brasil, comecei a me enveredar pelos blogues. Tive uns cinco domínios entre blogue-diário, blogue de receitas e de poesia. Vivia no chat da UOL fazendo contatos aqui e ali, tagarelando horrores, como boa geminiana de sol e e lua que sou.
Na vida adulta, o curso de Direito e a advocacia me tiraram desse universo. Mas, quando mudar de carreira se tornou um desejo pulsante, criei o Cebola Na Manteiga. Depositei ali a primeira crônica e, com ela, a esperança de um dia conseguir achar meu lugar na culinária, o que só aconteceu em 2018.
Segundo os médicos, por causa da baixa visão, naturalmente meu paladar e meus ouvidos se desenvolveram muitíssimo. Sou capaz de sentir, por exemplo, uma discreta quantidade de anis estrelado num cozido que não vi ser preparado, quando quase ninguém mais sente. Não sou uma pessoa que romantiza traumas, mas posso dizer que essa condição me ajuda todos os dias na minha atual profissão de cozinheira. Que coisa, né?!
Meu desafio, hoje, é ir aos poucos contando mais da minha história. Quanto mais faço isso, mais percebo como é importante revisitar os acontecimentos para me colocar no mundo. O psicanalista Christian Dunker fala que dor é uma questão de narrativa, e talvez por isso mesmo eu esteja aqui, neste espaço que considero confortável, com um quê de íntimo, contando essa história que, como um alimento cru, está passando por uma transformação dentro de mim - e da minha cozinha.
Delícias para satisfazer os ouvidos
Hoje, não tem playlist, mas vou bancar a tia (para não citar aquela palavra estrangeira que começa com “c”) e dizer que ando revendo muitos shows do projeto Tiny Desk Concerts. É lindo observar toda aquela gente reunida tocando os mais variados tipos de instrumentos, muitos dos quais nunca conheci, em lugarzinhos interessantes pelo mundo.
Me dá a sensação de que uma vida social pulsante está prestes a chegar, apesar da minha falta de otimismo para a pós-pandemia, com este desmonte todo acontecendo e as variantes chegando... Bom, não custa sonhar: destaque para essa e essa delícia de show, que já assisti incontáveis vezes!
Fica, vai ter broa!
A Prefeitura de Belo Horizonte, através do Circuito Municipal de Cultura, me convidou para apresentar, junto com o cozinheiro e multiartista Stanley (@mandaknega), o programa “Histórias de Alimentar a Alma”.
Nesse episódio temos uma canjica junina, feita pela Dona Helena, e nesse outro um caruru mineiro. Também teve um aluá, que é uma bebida indígena, feita pelo Pai Sidney d’Oxossi, a partir da fermentação do milho. Já está nos meus planos reproduzir aqui em casa! No último episódio, eu e o Stan gravamos uma receita de broa de milho vegetal que desenvolvemos para o programa! Estou orgulhosa dessa gostosura!
Foto da @rencaproducoes
Deixo aqui a receita escrita, com as medidas certinhas:
Ingredientes:
2 xícaras de água filtrada
⅔ xícara de azeite
1 xícara de açúcar cristal ou demerara (não dá certo com mascavo)
2 xícaras de fubá (de preferência de moinho d’água, não transgênico)
1 cl. (sopa) de fermento químico (não pode ser um fermento que tá há anos luz na geladeira, hein?)
1 cl. (sopa) de erva doce em sementes (opcional)
Como fazer:
Pré-aqueça o forno a 180ºC.
Unte uma forma com óleo vegetal ou azeite e reserve.
Bata a água e o azeite no liquidificador por 2 minutos, para emulsionar e deixar a broa fofinha.
Acrescente o açúcar e o fubá no liquidificador e bata por mais 2 minutos.
Adicione o fermento e a erva doce e bata por apenas alguns segundos, para incorporar.
Transfira a mistura para o tabuleiro e leve imediatamente ao forno. A broa ficará pronta em cerca de 40 minutos.
Só desenforme depois de esfriar, tá?
Recomendo que você coma junto tomando um cafézinho ou uma infusão, e quem sabe escutando o episódio que gravei com o podcast Benzadeusa, onde fofoco tudo sobre minha transição de carreira, já que vira e mexe alguém me pergunta sobre o assunto!
Mais um rolê (virtual, claro) pelo mundo
Já indiquei no Jornalzinho o seriado “Somebody Feed Phil” (Netflix), mas como há pouco lançaram a nova temporada, vim comentar que vale a pena assistir esse tiozão-bobão e dançante que visita, a cada episódio, uma cidade diferente em busca de comidas que fazem a gente balançar na cadeira, tamanha a vontade de dançar comendo. O bom mesmo são as imagens, comidas e entrevistas!
Assim como da última vez que recomendei, preciso dizer que assisti fazendo vista grossa com as piadinhas machistas do Phill — só então pude viajar junto com ele para lugares inimagináveis, quase sentindo o gosto dos passeios gastronômicos que ainda pretendo fazer nesta vida.
E não diga que não avisei: veja com uma larica às mãos! Indico, inclusive, a torta de fubá, campeã de audiência do blogue, cuja base leva apenas fubá, azeite e água e aceita várias possibilidades de recheio.
Planejar a vida para descansar na rede
Bati um papo com o Eduardo Amuri (@eduardoamuri) sobre comida e dinheiro, e você pode ouvir acessando o podcast Uma Horinha Sobre Grana, que recomendo para quem quer planejar a vida financeira. Em 2017 fiz um curso do Amuri que me ajudou bastante na transição de carreira.
Falamos sobre planejamento alimentar, então já aproveito para fazer um autojabá e dizer que acabo de abrir vagas para a Consultoria de Planejamento Alimentar para a segunda quinzena de setembro!
Depois disso, pretendo focar no lançamento do meu livro de poemas e também trazer ao mundo outros projetos que ainda não posso divulgar (achei chique contar isso, hahaha!).
Recomendo minha Consultoria para quem quer otimizar as tarefas domésticas que giram em torno da cozinha, sem romantizar as coisas. Meu serviço é personalizado de acordo com seus desejos, eventuais restrições alimentares e dietas receitadas por profissionais da saúde. Em resumo, o objetivo é ter autonomia na cozinha para gente poder continuar fazendo aqueles pratos gostosos, demorados e instagramáveis durante os fins de semana, mas principalmente saber lidar com a alimentação do dia a dia, que representa o grosso do comer, da forma mais prática e prazerosa possível.
Clique aqui e me dê um Oi que explico através de um PDF de fácil leitura como funciona, tá?!
Meus livros seguem à venda, minha gente
Sigo recusando publicidades Sempre tem gente nova aparecendo, então deixo os links do livro Me Tempera Que Eu Gosto (R$28), onde falo sobre especiarias e seus usos, e também do meu livro de fermentação, o mais querido de todos, Para Começar a Curtir: Fermentação de Vegetais (R$34).
Obrigada pela leitura!
Se você puder me pagar um um café a partir de R$10, contribuindo assim com a escrita mensal deste Jornalzinho, que conta com a revisão da Ana, da @revisa.prosa, e ilustração do Eduardo, do @comidailustrada, ficarei bem feliz!
Com amor e com fome,
Carol Dini