Salpicão é o encontro do brasileiro com Deus num dia de domingo.
Vejo poucas famílias usando panelas de ferro no meu entorno, exceto quando viajo para o interior de Minas Gerais e me deparo com o fogão a lenha, tão raro nas cidades grandes. As pessoas romantizam a panela de ferro, mas só quem usa cotidianamente sabe o trabalho que dá limpar, levar ao fogo, tirar ferrugem, depois untar e secar. Bonitas, tradicionais e trabalhosas.
Assisti Mo na Netflix e encasquetei de fazer azeite. Fui ao Mercado Central, comprei azeitonas gordas, pilei, espremi num voil e obtive um azeite perfumado bem gostoso, porém nada translúcido. Desde então eu fico imaginando o encontro do azeite fresco da mãe do Mo (personagem da série) com a minha língua. Na minha cabeça romântica o pilão dela deve conferir um gosto que nenhuma prensadora automática de azeitonas é capaz de proporcionar. Já tenho três metas para o próximo ano: visitar um olival, publicar o livro infantil que há pouco escrevi, sobre papilas gustativas, e aprender na terapia a não me importar com pessoas blasé.
Manoel de Barros falava que 90% da sua obra era invenção, e 10% mentira. Sou obcecada com a obra dele, especialmente depois de ter visto o documentário sobre sua vida. Essa filosofia manoelista me alivia na hora de escrever: nunca sei o quanto é invenção da cabeça, que escreve mentalmente a mesma história mil vezes antes de ir para o papel, e o quanto é alargamento da verdade, causado por essa repetição. O importante é contar histórias que em algum lugar, imaginário ou não, aconteceu.
Sempre penso na inutilidade de publicar receitas na internet, sejam elas escritas ou filmadas. Para que mais uma receita, se já temos milhões de versões de tudo e, no fim das contas, a maior parte das pessoas não conseguem cozinhar em casa por diferentes motivos? Se o google trends anuncia que as pessoas seguem interessadas em receitas entupidas de leite condensado e quero falar de ingredientes completamente diferentes? Mas vou lá e publico mesmo assim: seja pela cadência, pelas cores, pela beleza da colher de pau encontrando caminho na panela, seja para alguém se inspirar e, quem sabe, tirar a bunda do sofá e cozinhar algo, nem que seja uma pipoca. Minha sorte é de novo ler Manoel de Barros: “O poema é antes de tudo um inutensílio”. As receitas também.
Tomate maduro cru ralado com um tico de sal sobre uma torrada azeitada é melhor que muita gente. E especialmente melhor que gente blasé.
No final do ano as amoreiras do bairro começam a frutificar. Eu passeio com meu cachorro olhando para o chão na tentativa de encontrar vestígios roxos nas calçadas. As amoreiras florescem e frutificam com calma, mas amadurecem completamente, mudando do rosa forte para o roxo púrpura, de um dia para o outro. Posso jurar. Nesse curto intervalo entre as cores, alguns vizinhos fazem a limpa na árvore e deixam só o cheiro contando histórias. Um deles é uma senhora que vejo todos os dias na volta das minhas corridas, sentada sob a sombra de uma amoreira. Apesar do semblante sereno, posso apostar que ela catou todas as amoras daquela rua. Achei egoísta. Meu marido falou que a metade do bairro votou no Bolsonaro, o que explica a falta de senso comunitário. Um dia tomo coragem para perguntar.
É a segunda vez este semestre que eu saí de casa na intenção de tomar caldo de cana com suco de limão, mas o limão da pastelaria tinha acabado. Aproveitei a TPM, como sempre, para ter desculpa para chorar no caminho de volta pra casa por baixo dos óculos escuros: qualquer motivo para uma pessoa cansada desaguar está valendo.
Quando observo os pequenos detalhes das coisas vivas, acende uma luzinha na minha cabeça. Quero mais momentos assim.
Vem se planejar comigo?
Logo mais teremos janeiro, quando cai bem começar a praticar a máxima “descascar mais e desembalar menos”, comer mais gostoso, cuidar do corpo e do que entra na despensa, otimizar o tempo investido na cozinha e também economizar com os deliveries. Eu juro que planejar pode ser um prazer!
Para começar 2023 com a vida alimentar mais gostosa, me manda um Oi aqui que envio um PDF com um FAQ que tira as dúvidas sobre o planejamento. Posso dizer que este ano foi especial, pois muita gente que se consultou comigo anda mexendo panelas com mais frequência! É uma felicidade enorme contribuir para um mundo com mais autonomia alimentar, agradeço quem anda espalhando a palavra do planejamento :)
Errata
A última news foi revisada pela amiga e escritora Nina Rocha, mas por um lapso eu enviei para vocês a versão original — foi um erro na hora de colar o texto :/ .
Nem Clarice Lispector foi perdoada: tasquei o nome dela errado e tomei xingos razoáveis. Peço desculpas. Desta vez tudo passou pela revisão da parceira de texto e fogão Maria Ambuá. E a diagramação e desenho, como sempre, ficou por conta do Eduardo, do @comidailustrada.
Por fim, quero um abraço virtual para fechar bem essa última edição do ano: vocês estão gostando desse novo formato de texto? Deixem um coraçãozinho e comentem, se possível, pois é gostoso demais saber se minha escrita de alguma maneira está tocando vocês!
Com amor e com fome e até o ano que vem,
Carol Dini
oii carol! vim comentar que sim, estou amando esse formato do jornalzinho, e foi tão gostoso e lindo ler pela manhã, após acordar. agora vou passar um café e meu coração vai ficar ainda mais quentinho <3
dei muitas risadas com a história da senhora que não compartilha amoras com o resto do bairro kkkkk na minha rua exterminaram todas as plantinhas de amoras silvestres e foi muito triste :'(
por fim, ler suas histórias me da mais e mais vontade de conhecer BH.
um beijo!
Carolina, que delícia acordar a ler a sua news!
Adorei o formato e me identifico: também sofro com as pessoas blasé, levo pro pessoal, fico remoendo por dentro. Também me pergunto se o meu vizinho do segundo andar, recém chegado à Portugal, votou em Bolsonaro. Na dúvida, confesso que acho melhor imaginar que não e não perguntar - conversar sobre nossos cachorrinhos.
Com a mudança de país as investidas na cozinha se tornaram muito necessárias - e um prazer. Mas planejamento e cuidado são importantes... se deslizamos um pouquinho, lá estamos nós comendo pizza de supermercado e coxinhas congeladas, mais uma vez.
Que 2023 seja lindo pra você!!!! Muito obrigada pelo afago em forma de newsletter.
Raquel