os apoiadores desta news este mês terão acesso a um roteiro – dividido por bairros – de lugares com bons pratos vegetais em Belo Horizonte! vocês me incentivam a trazer pra cá minhas vivências, anotações, dores e delícias. obrigada, pessoal! o link está no final deste e-mail :)
Sophie, uma amiga russa, admirando comigo a paisagem da mata atlântica às sete da manhã, enquanto o orvalho evaporava por causa dos primeiros raios solares, disse que a mata estava “cheia de suco”. nunca mais vou me esquecer dessa frase caldadosa, a boca chega que enche d’água.
no Norte do Brasil existe uma expressão muito bonita para se referir ao dinheiro: “cacauzinho”. aqui, no Sudeste de Minas Gerais, usamos “cascalho”, acredito que em referência à exploração das nossas montanhas. como cascalho é uma palavra pedregosa, vou pegar a expressão nortista emprestada para usar no dia a dia.
Denise Fraga disse que ao ler “Clarice e Pessoa, você vai sofrer mais bonito, você não vai deixar de sofrer. se você tem o conto da Conceição Evaristo ou a música do Chico para cantar, você tá lá chorando, mas você tem a cumplicidade do poeta, tem o braço dado, tem a felicidade de saber que o poeta viveu a mesma adversidade que você tá vivendo naquele momento, mas ele te deu aquela voz, que você tá vivendo naquele momento”. depois disso, passei a ter menos medo de me expor: sempre tem alguém que se identifica.
foi meu aniversário e eu resolvi fazer uma festa junina. aniversário, para mim, sempre tem um quê de lamento. fico chorosa, revisitando tudo que fiz e mastigando os planos que não deram certo. neste ano, afoguei minha tristeza num caldeirão de quentão de abacaxi caramelizado. nessa altura da vida, vocês já devem saber que o pulo do gato está em derreter uma boa quantidade de açúcar, adicionar as frutas de sua preferência ali até caramelizar, e só depois adicionar água, certo? eu me sinto a própria Babette, no filme A Festa de Babette, cozinhando um banquete para os amigos. e não entendo por que só faço quentão uma vez por ano.
comemorar meu aniversário me lembra que me tornei uma pessoa muito restrita na pandemia, sentia uma necessidade imensa de ser o mais correta possível: para minimizar o impacto ambiental, compostava lixo num apartamento pequeno, usava copinho menstrual mesmo odiando, me tornei vegana
(e fui cancelada quando voltei à vida de ovolactovegetariana por conta de uma compulsão alimentar dos infernos),julgava os vizinhos que saiam de casa e cheguei até a usar vinagre e bicarbonato para lavar o cabelo. ainda sigo com minha alimentação praticamente vegetal, mas sem proibições, pois pelo menos isso tudo serviu pra eu descobrir que tudo que é proibido me engatilha e tem uma chance enorme de virar compulsão. em maio fez um ano que a OMS decretou o fim desse período de reclusão, morte, tristeza, falta de serotonina e convívio social. algum dia nos recuperaremos? fico sempre pensando no impacto que esse tempo de pandemia causou nas nossas vidas, trabalho, amizades... não tem um dia que eu não pense nisso: é gostoso sobreviver e mudar de ideia.
minha vizinha de oitenta anos veio à minha festa. me trouxe flores, comeu casulo de queijo, mas foi embora quando começou a tocar Ebony, WS da Igrejinha e Tz da Coronel, diretamente das minhas playlists de corrida. como nós plantamos uns ipês juntas aqui na rua, talvez ela ainda goste de mim.
modernidade x tradição
farinha de milho fermentada, da Dona Iracema
a fermentação não é novidade no Brasil: temos o exemplo da puba, do tucupi, das farinhas d’água, aluá, café, vinhos de fruta, pimentas, cachaça, cajuína, queijos e por aí vai. mas estamos tão acostumados com os saquinhos, latinhas e embalagens coloridas dos alimentos que esquecemos disso. quase ninguém sabe, por exemplo, que o polvilho azedo é nada mais que o polvilho doce fermentado, que desenvolveu acidez.
o senso comum, que traz a modernidade como superação do passado, não se aplica quando estamos falando da indústria de alimentos. a Rodica Weitzman, antropóloga social, traz em "As práticas alimentares “tradicionais” no contexto dos povos indígenas de Minas Gerais" trecho interessante sobre essa questão:
"(...) o dualismo criado entre a tradição (associada ao passado) e a contemporaneidade (vista como símbolo de mudança) nega o caráter mutável e dinâmico dos processos sociais. Traz uma noção ilusória de que mudanças apenas ocorrem no contexto da modernidade, enquanto as tradições são enraizadas e cristalizadas no passado, que pode perdurar na atualidade de forma inalterável”.
em maio deste ano, visitei um monjolo no interior de São Paulo, localizado no meio de uma floresta preservada, a grandeza da Mata Atlântica jorrando por todos os lados, samambaias jurássicas, com folhas maiores que eu. e lá estava Dona Iracema, com uma roupa toda cor de rosa, do lenço ao crocs, aguardando pacientemente o vai e vem do moinho d’água amassando o milho fermentado. o monjolo, já mambembe por conta do trabalho incessante de anos, demorava mais que o normal para encher o velho tronco de água, responsável pela moagem.
submerso no rio, sob pedras cobertas com muitas folhas de caité, estava o milho protegido da presença do oxigênio, passando por um processo de fermentação, técnica que está há gerações na família de Dona Iracema.
depois que o milho fermenta, ela seca, pila, e o transforma numa farinha de comer rezando, vendida em pequenos saquinhos. a tristeza da Dona Iracema é pensar que ninguém da família tem intenção de tocar a produção de farinha no monjolo, o que é totalmente compreensível, afinal, é uma prática desvalorizada. é quase uma missão impossível para uma senhora já sofrida com as dores e limitações da velhice, competir com a agricultura de milho transgênico.
em Comida do Cotidiano, Max Jaques diz:
“para que nosso ainda elitista cenário gastronômico encontre a complexidade da sociedade brasileira, precisaremos cozinhar nossas certezas em caldos lentos e nos lambuzar de Brasil. assim, teremos mais chances de construir novos panoramas e também aumentaremos as chances que nosso estudantes saiam de suas graduações preparados para o trabalho social tanto quanto para o preparo de fichas técnicas e patê sablée. quem sabe, finalmente, poderemos pensar na ousadia de apresentar a cozinha brasileira para o mundo, (...), uma gastronomia que seja um prato cheio para nosso futuro”.
me resta comer a farinha da Dona Iracema com arroz e feijão, torcendo para que nosso futuro seja repleto dessas ideias aqui.
cadernos
ultimamente tenho recebido muitas newsletters sobre como escrever mais. para mim a resposta está no caderno de bolso sempre à mão: todo mundo tem ideias diárias sobre coisas aleatórias, sejam pensamentos, frases, delírios utópicos… a maior parte deles se torna imprestável depois que a ideia assenta. mas de vez em quando sai algo que presta. lembro sempre dessa música do Lula Queiroga:
“Morava numa caverna/ escrevia nas paredes
Morava no mar vermelho/ escrevia numa pedra
Morava num palacete/ escrevia num papiro
Morava numa palafita/ escrevia num bilhete
Morava numa oca/ escrevia com fumaça
Morava num sobrado/ escrevia num caderno
Morava no inferno/ escrevia via fax
Morava num viaduto/ escrevia com sotaque
Morava numa favela/ escrevi uma canção prá ela”
do meu caderno de bolso
(coisas que não precisam de explicação)
casquinha de arroz queimado
vegetais tostados na frigideira de ferro ultra quente com óleo de gergelim
a borda recheada da pizza do bairro (tipo o Cardoso, em Belo Horizonte)
morder um cravo no lugar de morder um chiclete com gosto de remédio
o sol das manhãs no mês de julho
essa receita de chili oil
uma mulher a escaldar o polvilho para fazer pão de queijo
dias crocantes X dias de pão murcho
a pessoa que, com um sorriso, faz a gente entregar todas as rapaduras e pitangas
a taça de vinho quebrada
meu trabalho por aí
falar na primeira pessoa é sofrido: tento não ensimesmar o texto, ao mesmo tempo que tem muito de mim aqui. tanto como cozinheira, como quanto escritora, nunca acho que as coisas estão prontas o suficiente para serem divulgadas. quando crio um prato ou presto uma consultoria, ou até quando escrevo uma receita para postar, penso no resultado inacabado, considero tudo sempre passível de melhora, ainda que estejamos falando de uma técnica muito simples.
o Ottolenghi, que eu citei nesse vídeo, uma das minhas maiores referências na cozinha, fala que na cozinha vegetal as técnicas se expandem e estão quase sempre inacabadas, e isso me acalma. sendo assim, deixar eu contar sobre os trabalhos deste ano:
tem Oficina de Fermentação à vista: 04/08 (domingo), em Belo Horizonte
a Revista Cláudia me convidou para uma série de vídeos, a primeira receita, de coalhada rosa, está aqui
estou em fase de criação do menu vegetal do restaurante Bené da Flauta, em Ouro Preto/MG. vocês já podem ir provar!
pessoas do Rio de Janeiro podem encomendar refeições congeladas maravilhosas e orgânicas da Lá Do Sítio. parece impossível, mas elas mantêm a textura depois de descongeladas. amei fazer esse trabalho!
foi uma delícia criar junto com os multiartistas Vitor Barão e Carolina Coronato o conceito e modelo de negócio das Noites de Fermentação, que rolam em São Paulo/SP toda sexta-feira. aproveitem!
em Bonito/MT, vocês podem comer na Casa do João, um restaurante maravilhoso que agora conta com várias opções vegetais
créditos
revisão: Nina Rocha
fotografia: as fotos desta edição são do fotógrafo documentarista Sal, que nasceu no Macapá, mas mora atualmente em São Paulo. foi ele quem me explicou o significado de “cacauzinho no bolso”.
com amor e com fome,
Carolina Dini
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