invisto muito na minha saúde física para ser uma velha que amarra os próprios cadarços. brinco que é para carregar panelão aos noventa anos, pois, o que me tira o sono é pensar que um dia posso ser totalmente dependente de alguém para fazer as tarefas cotidianas. aos trinta e seis anos, ainda com muito colágeno, mas sem uma bola de cristal para prever o futuro, cuido do corpo: cozinho o maior número possível de refeições em casa, evito ultraprocessados, corro com meu cachorro e, pelo menos duas vezes na semana, tenho me dedicado à musculação. até separo a roupa de me mexer no dia anterior para não correr o risco de desistir do projeto “senhora-que-anda-de-bicicleta”. o bem-estar promovido pelos hormônios vale a superação da preguiça.
mas a vida sempre está sempre provando que não temos controle de nada: nos últimos meses, ao investigar dores nos pés, descobri que piso torto e precisei fazer uma palmilha daquelas que obrigam o sujeito a pisar alinhadamente, para no futuro não comprimir as vértebras da coluna, já que tudo no corpo está incrivelmente conectado.
no mesmo mês, dois oftalmologistas me disseram que as “mosquinhas” que apareceram na minha vista serão companhia para sempre, pois o desgaste do vítreo dos olhos somado à minha alta miopia está causando uma sensação de sombras (as danadas são tecnicamente chamadas de “moscas volantes” — um horror). eu nunca tive notícias de que, em algum momento da vida, especialmente antes dos quarenta anos, mosquinhas flutuantes e transparentes pudessem ficar passando freneticamente pelos meus olhos. então, cá estou eu, apavorada com o envelhecimento inevitável, reaprendendo a andar, a correr e me acostumando com as sombras estranhas toda vez que olho alguma superfície muito clara.
viverei torcendo por uma revolução tecnológica, acessível a todos e não somente aos bilionários, que resolva esses e outros problemas coletivos sobre o envelhecimento, afinal, eles surgem para todos, sem exceção, com o passar dos anos (saudemos o SUS!). enquanto isso, sigo a rotina que está longe de uma atleta, mas demonstra o básico de um carinho com a casca que uso para andar pelo mundo sem deixar que a opinião das pessoas seja norteadora dos meus caminhos — e sempre com o desejo de descobrir novas imensidões, novas pessoas e formas de viver! quero ser uma senhora que possa, futuramente, sentir o sabor da minha vida e dizer o mesmo que Simone de Beauvoir:
“A impressão que eu tenho é de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou para mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar, da maneira mais direta, o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”
garfadas por aí
passei dez dias viajando sozinha pelo Rio de Janeiro com a intenção de fazer uma pesquisa gastronômica. andei do Leme ao Pontal, literalmente, para descobrir bares, PFs, restaurantes, quiosques, barracas, padarias e trailers que valorizam os vegetais.
antes de pegar estrada, usei as minhas redes sociais, tal como os Maias faziam, para pedir indicações e perguntei aos amigos cariocas onde ir. dividi os destinos por bairros e todo dia acordei decidida a percorrer alguma regional.
fiquei impressionada com a vasta opção de comidas vegetais de qualidade, mas cheguei à triste conclusão, mais uma vez, de que as melhores estão fora dos restaurantes destinados ao público vegano e vegetariano: esses, em sua grande maioria, se preocupam mais com a militância do que com o ponto dos ingredientes. existem restaurantes vegetais impecáveis, e claro que não tem nada de errado com isso ou com a busca pela textura da carne a qualquer custo, mas o fato é que cansei de vez desse tipo de comida. questão de gosto, claro!
posto isso, reuni os lugares onde voltaria aqui, para que outras pessoas possam visitar também, pois acho que estão cada vez mais raros os guias com dicas não patrocinadas. se indico uma casa publicamente, é porque realmente acho que vale a pena, e não porque conheço o filho do dono do lugar ou só porque ganhei um jantar. quando ganho, só divulgo se gosto e faço questão de sinalizar isso. quero um mundo com mais comida agroecológica e menos conceito, mais prazer pelo prazer e menos narrativas mirabolantes. e muita coisa precisa mudar no mundo gastronômico para todo mundo sair ganhando, sabemos.
no mais, prometi, para mim mesma, que pelos próximos anos viajarei a todos os estados brasileiros fazendo essa mesma busca independente, pois esses planos para o futuro me ajudam a levantar da cama com mais vontade de estudar e cozinhar.
amenidades
a maria-sem-vergonha é uma flor muito safada, que vive se ajustando aos pequenos espaços: nasce nas trincas das paredes chapiscadas, nos bueiros e nos mais minúsculos vãos. aqui em casa, cresceu uma de flores brancas, que contrasta perfeitamente com a cor terracota da parede. fiquei muito tempo observando a bonita, proibida em várias cidades e tida por muitos como “invasora”, e lembrei da arte do Material Poético, que fala sobre as pequenas belezas e resistências da vida: viver é sobre a possibilidade de encontrar bonitezas pelo caminho.
uma news que eu amo receber
a newsletter sobre comida do The New York Times chega no meu e-mail há anos, então, fico sempre observando como as tendências gastronômicas hypadas vão sendo depositadas ali e, meses depois, são replicadas no Brasil e em outros países. assino para acompanhar esse movimento de importação dos pratos, nem sempre bom, mas também porque as fotos são belas e tenho adorado ver, na prática, como a gastronomia vegetal vem ganhando espaço. já que é inevitável um prato hypar e ser reproduzido em massa pelas pessoas em casa e pelos restaurantes, que hypem os vegetais, ainda que sempre acompanhados do mesmíssimo discurso do protagonismo-vegetal-plant-based, que na maior parte das vezes está desconectado da luta política contra o agronegócio.
tempo livre
sempre tenho que me lembrar daquela máxima dos criadores de conteúdo, escritores e artistas, em geral, especialmente quando me sinto triste: sou uma pessoa criando para pessoas, e não para um algoritmo. prefiro enviar espaçadamente este e-mail, com referências e indicações, quando tenho alguma coisa interessante para falar, ao invés de cumprir prazos imaginários. e é no meu tempo livre que se desenvolvem as melhores ideias, afinal, uma mente descansada trabalha com menos pressão.
ali, entre um livro de poesias e o sol da tarde, bem ali, é que nascem as marias-sem-vergonhas brilhando como luzes contra a parede vermelha do dentro de minha cabeça, brotando assim as ideias que cultivamos aqui, juntos, no que escrevo e no que vocês leem! espero que estejam gostando do jardim acidental que estamos cultivando!
o Guimarães Rosa escreveu que “felicidade se acha é em horinhas de descuido”, como uma flor rompendo o asfalto, como pôs Drummond, em “A flor e a náusea”.
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brunch em São Paulo
no dia 28/10, estarei na padaria Na Fila do Pão apresentando o cardápio novo que estamos criando juntos, cheio de opções de comidas vegetais gostosas de verdade e nada óbvias, que não tentam imitar texturas de outros ingredientes: são o que são! para quem quiser experimentar, é só aparecer!
com amor e com fome,
Carol Dini
créditos
diagramação e ilustração: Eduardo Albuquerque (@comidailustrada)
revisão: Ana Luiza (@revisa.prosa)
Quando tinha um pouco menos que 36 comecei a perceber essas mosquinhas e outros sintomas, mas a maior dificuldade era de ajustar o grau exato do combro miopia + astigmatismo no olho esquerdo. Acabei descobrindo que era ceratocone num grau avançado que me levou, anos depois, ao transplante. Hoje, aos 45, consigo enxergar bem melhor que antes, sem óculos. Pior que a tendência, com a multiexposição às telas, é que passemos a ter problemas de visão cada vez mais cedo :-(
Isso posto, amei as dicas e o lance da preocupação com as comidas em si, mas do que com a instagramização delas. Vou anotar pra quando foi ao Rio :-).
Que delícia acordar e já ler essa boniteza de jornalzinho! Por aqui as reflexões sobre o envelhecimento também andam bem latentes, com um pai prestes a completar 80 anos e começando a precisar de ajuda, e uma avô de 85 totalmente dependente tenho refletido de mais sobre isso. Adorei ler suas reflexões Carol. Adoro te ler!