comer: o verbo mais gostoso da língua portuguesa
sobre erotismo e comida, carta escrita à quatro mãos
esta é uma carta escrita em conjunto por Carolina Dini e Bruna Kalil Othero, um dueto, uma conversa. duas autoras sentam-se à mesma mesa e degustam, juntas, as delícias de um banquete, da sopa à sobremesa. vem comer com a gente?
Dão o nome do desejo a essa comilança toda.
Hilda Hilst
em Contos d’escárnio. Textos grotescos
Moqueca de Maridos (2023), Denilson Baniwa
Petiscos & Acepipes
Então o verbo fez-se carne, e nós comemos.
Polissemia, uma palavra com múltiplos significados — que coisa gostosa. Um dizer do povo brasileiro: as quatro melhores coisas do mundo são comer e viajar. Como Mário de Andrade escreveu, “se três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria…”’]
As pessoas que cozinham têm um quê de safadeza: a vaidade faz com que quem mexe as panelas queira sua comida dentro do estômago dos outros. Afinal, “a Gastronomia é a arte de cozinhar os alimentos para produzir felicidade” [Josep Munoz Redón, em A Cozinha do Pensamento, 2017]
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chama-se Galli Mathias. Comi-o. [Oswald de Andrade no incontornável Manifesto Antropófago, 1928]
Desde Freud sabemos explicitamente que a gulodice se encontra ligada à sexualidade, o oral sendo o emblema regressivo do sexual. [Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do imaginário, 1998, com tradução de Eduardo Carlos Bianca Bittar]
A comida, como o erotismo, entra pelo olho, mas há pessoas capazes de colocarem qualquer coisa na boca. [Isabel Allende, em Afrodite, 2011]
Em Ouro Preto, Minas Gerais, há uma expressão para quem come quieto: “gaveteiro”. Em Dicionários e Expressões da Língua Portuguesa (Carlos Alberto de Macedo Rocha e Carlos Eduardo Penna de M. Rocha, 2019), existe uma explicação para “comer na gaveta”: “ser sovina/avarento, expressão que teria vindo da avareza extrema de se esconder na gaveta da mesa o prato com a comida, ao receber inesperadamente uma visita”. Quem nunca escondeu chocolate no guarda-roupas, que atire a primeira pedra.
Ainda no Dicionário, a expressão “comer e chorar por mais”: apreciar enormemente uma coisa; e ainda: “comer com a testa”: ver a coisa que deseja e não poder possuí-la.
Ao fim da aula do turno matutino, quando tiravam a sorte para escolher quem levaria a compoteira de baba de moça para casa, dona Flor sentiu sua presença mesmo antes de vê-lo. Até então não se acostumara com o fato de ser apenas ela a enxergá-lo e, ao dar com Vadinho junto à mesa, todo nu e exibido, estremeceu. Mas, como as alunas não reagiam ao escândalo, recordou-se de seu privilégio: para os demais seu primeiro marido era invisível. Ainda bem. [Jorge Amado, em Dona Flor e Seus Dois Maridos, 1976]
O sabor do trisal
PRATO PRINCIPAL: SUSTANÇA
Em inglês, diz-se main course, curso principal. O infinito dessa outra palavra: o curso pelo qual a comida passa através do nosso corpo, um curso de culinária, navegação de longo curso, o curso dos anos, o curso das ideias, o curso dos rios. No dicionário, 18 significados em contextos diferentes, do latim “ato de correr”. Vence por um o verbo “comer”, com 17 significados. São eles: ingerir (comer vegetais fermentados); experimentar (comer do fruto proibido); roubar (comer milhões na transação); pular/omitir (comeu dois parágrafos na leitura); cortar (a diretora comeu 30min do filme); suprimir (ele come palavras quando fala depressa); carcomer (a gangrena comia-lhe a perna); esbanjar (comeu a fortuna até o último centavo); causar comichão (o desejo comia todo o seu corpo); acreditar piamente (essa mentira ninguém come); ouvir embevecidamente (comia os ensinamentos da mestra); penetrar (comer um cu); driblar (comeu a zaga do outro time); ganhar as pedras do adversário em jogos (comer a peça no xadrez); e por fim o verbo como substantivo, o comer como ação ou alimento. A diferença entre o significado do mesmo verbo está na sua transitividade (outra palavra deliciosa). Transitivo direto: comer o quê, ou quem? Indireto: comer do quê? Intransitivo: simplesmente comer, sem mais.
Moqueca de maridos: mitos eróticos indígenas (1997), de autoria e tradução coletiva, organizado pela Bette Mindlin, reúne histórias trazidas da linguagem oral por narradores e tradutores dos povos Makurap, Tupari, Wajuru, Djeuromitxí, Arikapú e Aruá. São mitos de origem que perpassam o corpo, o desejo e a sexualidade como aspectos fundadores da humanidade. Esses textos curtos, divertidos e sensuais ajudam a explicar o mundo e as relações entre seres humanos, animais, e a natureza. O texto-título, apropriado por Denilson Baniwa na imagem que ilustra essa carta, é sobre uma entidade moradora dos rios que ensina cantos às mulheres em troca da carne moquecada de seus maridos.
Bem mais que a cama, a mesa originou, por exemplo, diversas ocupações profissionais, e continua produzindo: “o cozinheiro comum, o chef que cria e comanda a cozinha, o engenheiro de alimentos, o food designer, o nutricionista, o masseiro, o pâtissier, o restaurateur, o maître, o saucier, o barista, o mixologista, o garçom, o copeiro e todas as outras ocupações periféricas que se destinam direta ou indiretamente à mesa, como os açougueiros, os verdureiros, os fruteiros, os granjeiros, os peixeiros, quitandeiros, os queijeiros, os herbalistas. A própria comida foi imaginada não apenas como fantasias da nutrição, mas também como remédio, droga, veneno, panaceia, diversão e arte. Saúde e doença, vida e morte, estiveram sempre intimamente ligadas a ela. Tabus, proscrições e prescrições, dietas e regimes, tudo isso vigia constantemente a mais insidiosa, diuturna e permanente das tentações. [Gustavo Barcelos, em O Banquete da Psique, 2017]
Na brilhante Antologia da poesia erótica brasileira (2015), Eliane Robert Moraes coleciona grandes textos da putaria nacional do século XVI ao XXI, e, em muitos deles, há a duplicidade apetitosa do nosso verbo comer. A fome de luxúria transita entre o humor, o drama, e o canibalismo. Genitais se tornam frutas e lambuzam, escorrem, babam. Vinicius de Moraes: Antes que a terra a coma, como eu. Anônimo: Gosto dela só por isso, / Que a dentada tem feitiço. Gilka Machado: E que prazer o meu! que prazer insensato! / — pela vista comer-te o pêssego do lábio, / e o pêssego comer apenas pelo tato.
Esta bela capa que tem em si o mistério & a censura do erotismo: a sombra de um soneto.
SOBREMESA
Nostalgias Canibais (2024), Odorico Leal: num dos melhores livros deste ano, acompanhamos a comilança antropofágica de um imortal que atravessa os séculos buscando encher sua barriga.
Cama e mesa (1981) , Roberto Carlos: polissemia erótica da cama & da mesa, uma delícia, obra-prima dentro da longa tradição brasileira da baixaria elegante de duplo sentido.
As metáforas culinárias salvam na hora de descrever nossos sentimentos: em A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro (1999), a personagem relata seu gozo com um amante e em seguida conta: “depois dele eu comecei a achar meu noivo um chato, com gosto de jujuba velha”. Nem sempre as sobremesas são gostosas.
O Presidente Pornô (2023), Bruna Kalil Othero: um personagem-frankenstein, colagem histórica de todos os homens a ocuparem a nossa presidência, sente muita fome dentro e fora do gabinete. Ele dá & come enquanto impérios e repúblicas caem ao seu redor.
O poema “Três jeitos de amar o seu corpo”, do livro Anticorpo (2017), Bruna Kalil Othero.
Amanteigado
Melado de cana
Melado na cama
Besuntado, azeitadoÉ assim que quero comer você
[Carolina Dini, em Com os Dois Pés na Cadeira, 2022]
Dulçor
A poesia que cresce na panela
Emana junto ao fio de sol
Pousado no escorredor de pia
Escuto o turbulir do cozido
Afoguetando meus ouvidos
Como um orgasmo docinho
Laranja-tinindo-abrilhantado
Te espero para apreciar
O prato quase quente
A poupar minhas papilas inteiras
Gustativas para mais tarde
[Carolina Dini, em Com os Dois Pés na Cadeira, 2022]
com amor e com fome,
Bruna Kalil Othero e Carolina Dini
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Lembrei do Luiz Fernando Veríssimo, no O Clube dos Anjos: "A fome é o único desejo reincidente". Obviamente o conceito de fome foi atualizado por vocês.
Uma honra brindar de garfo & de pena com você <3